As coisas simpáticas da vida
Crônica
O Zorro que bebe cerveja, uma crônica de Felipe Braga Netto
00:24Isabela Lapa
Chegou mais uma quarta-feira e continuo por aqui, com a contagem regressiva para o livro As Coisas Simpáticas da Vida, do Felipe Braga Netto.
Por isso, e como combinei com vocês, vou deixar aqui mais uma crônica para que comecem a sentir o gostinho da obra...
O Zorro que bebe cerveja
“É fácil observar que a
natureza torna bastante dura a vida daqueles de quem deseja extrair grandes
coisas”.
Charles Baudelaire
Perto de minha casa (isto é, do
meu apartamento) há uma simpática loja de fantasias. Sempre nos cruzamos: eu,
voltando do trabalho, olho para ela; ela olha para mim. Nos cumprimentamos com
um discreto sorriso, e eu digo: “Olá, lojinha simpática, como vão as coisas?”.
E ela responde, amável: “Bem, obrigado”. É toda nossa relação.
Ou melhor: era. Essa semana, vejam só, precisei ser fantasiado. Não
pensei que um dia fosse precisar da lojinha amiga, mas eis que me convidam,
umas ex-alunas, para uma festinha, e me intimaram, sem desculpa, a ir
fantasiado. Logo pensei: vou conhecer a lojinha amiga, minha quase vizinha.
E lá fui eu. Bem, antes devo dizer que existem, no meu bairro, outras
lojinhas similares. Aliás, há de tudo, menos farmácias. Livrarias (puxa,
quantas), bares (isso não é vantagem do meu bairro, pois em Belo Horizonte eles
nascem até em árvore), restaurantes (onde o divino prazer profano se faz
presente), umas padarias amigas onde consigo meu misto quente matinal, enfim,
faço quase tudo a pé – a única coisa que não tem por perto é farmácia. Ainda
bem. Prefiro a simpatia das fantasias à austeridade das farmácias.
Na lojinha tirei umas dúvidas que tinha. Perguntei assim: vem cá, loja
simpática, as pessoas alugam fantasias sempre? A lojinha me garantiu que sim,
ainda disse que todos os dias. Não sei porque, mas fiquei feliz ao saber que,
naquela segunda-feira morna, sem graça ou magia, há alguém vestido de toureiro
ou imperador romano.
Que aliás era como a Lourdes – a amável atendente – queria que eu fosse
vestido. De imperador romano. Ponderei que não, Lourdes, pense bem, eu não
dirijo nem a minha vida, não vou dirigir um império. Não, nem por uma noite.
Não tenho cara de imperador, logo veriam que eu não sou Nero, não ficaria
convincente, não ficaria.
Ela então me veio com um homem das cavernas. Também assim é demais. Nem
lá nem cá, né Lourdes! Tudo bem, não sou um embaixador inglês, mas tenho
estirpe. Não vou sair por aí com um tacape na mão, derrubando a pauladas as
mineiras que me atraem. Mesmo porque, se fosse assim, sobrariam poucas nas
ruas.
Lourdes me trouxe o Zorro. Devo confessar que mal lembro do Zorro. Sei
que tinha cavalo, máscara e chapéu. Lembro vagamente que ele fazia coisas boas.
Não lembro quais. Me disseram depois que ele tinha um ajudante, algo assim. A
minha fantasia veio sem ajudante, preciso confirmar isso para reclamar depois,
se for o caso.
Devo dizer que fiquei bem de Zorro. Nem desconfiava, mas acho que nasci
para isso. Quem me vê logo diz: eis o Zorro. Mesmo sem máscara, e até sem
chapéu, está na cara que eu sou o Zorro. Foi o que Lourdes me disse, e eu logo concordei
com ela, sim, Lourdes, você tem razão. Como vivi tanto tempo sem saber disso?
Lá fui eu com o Zorro embaixo do braço. Eu já quis sair de Zorro, mas
fui convencido que era melhor deixar para depois. De qualquer forma, deixei a
espada bem a mostra, para qualquer eventualidade.
Em casa precisei me segurar para não assumir minha verdadeira
identidade. Já queria sair por aí fazendo justiça, o problema é que a festa só
seria mais tarde. Não tem problema, pensei, a justiça já esperou tanto, que
pode esperar mais um pouco.
Dormi, que Zorro cansado não faz verão, e acordei pronto para inaugurar
reinos de compreensão e bondade. Logo, porém, me deparei com um problema grave.
Roupa de Zorro não tem bolso. Absurdo. Onde vou colocar o dinheiro que roubar?
Nem o pouco dinheiro que me acompanha tem aonde ir. Outro dilema logo se
instalou, e disputou minha atenção com a falta de bolsos: não dava para usar
óculos e a máscara do Zorro ao mesmo tempo. Não sei se o Zorro era míope,
espero que não.
Sem bolsos e sem óculos, mas com alma pronta, me preparei para
enfrentar os inimigos. O primeiro inimigo era o elevador do meu prédio. Se eu
encontrasse algum conhecido, será que ele me reconheceria atrás da máscara e do
chapéu? Outra dúvida: se fosse um vizinho rico, ficaria bem roubá-lo ali mesmo,
para dar aos pobres, talvez ao pobre Zorro? Eram dúvidas sérias, que me
perturbavam, mas que foram embora quando o elevador chegou. Notei, irritado,
que os presentes não respeitaram muito o Zorro. Riram e zombaram. Na certa não
perceberam a espada que eu trazia sob as vestes. Se vissem respeitariam.
Preciso confessar uma fraqueza. Fui à festa de carro, não fui à cavalo.
Já não se fazem mais zorros como antigamente. Acho que Zorro não combina muito
com carro. A capa e o chapéu atrapalharam um pouco minha já atrapalhada
destreza automobilística.
Para um carro, no sinal ao meu lado, e é evidente o espanto de quem
nunca viu o Zorro de perto. Talvez temam pela própria sorte, nunca se sabe
quando Zorro atacará. Mas eu não estava com vontade de atacar ninguém. Quando o
sinal abriu, e meu carro preto arrancou poderoso (meu carro é preto, claro,
carro do Zorro é preto) pude ver o ar de alívio emocionado de quem agradece aos
céus a graça de sair incólume de tão grave situação. Não é sempre que se sai
com vida de um encontro com Zorro.
Chego na festa, e percebo, abismado, que há outros Zorros. Quis começar
o duelo desmascarando os falsários. Acho muito errado isso de outros Zorros
além do verdadeiro. Depois pensei melhor, e conclui que Zorro tem alma
generosa, perdoa os tolos de fraco espírito. Não matei ninguém, mas quando
cruzava com um falsário deixava claro, pelo olhar, que não estava gostando da
imitação.
Também não marquei ninguém com um Z na cara. É uma pena, só depois
lembrei da minha marca registrada, que é deixar um Z maiúsculo na face dos
malvados. Também não vi nenhum malvado na festa, vi só umas malvadas, que se
estivessem com mais roupa talvez não perturbassem tanto meu confuso coração.
Estou meio sem jeito, mas preciso confessar outra fraqueza: bebi
cerveja. O mais honesto seria colocar a frase no plural, mas eu vou deixar
assim mesmo. Não sei se fiz certo. Acho que Zorro não bebe cerveja. A espada
não gostaria disso. Felizmente não precisei tirá-la da bainha, quer dizer não
sei se felizmente, mas o certo é que não tirei.
Também dancei, para o meu espanto, e para o espanto de Zorro, que
talvez não aprovasse os passinhos ensaiados, que insistiam, bondosamente, em me
ensinar. O Zorro sem cerveja tinha mais compostura, seguramente. E olha essa
máscara, Zorro, é para cobrir os olhos, não a orelha. Não, esse chapéu não é o
seu. Da próxima vez ouvirei Lourdes e venho de Nero. Combina mais com fim de
festa.
Fui embora. Ainda tentei fazer justiça pelo caminho, mas devia estar
tarde, pois nem uma injustiçazinha encontrei acordada. Encontrei foi uma blitz
mal humorada que – suprema audácia – parou Zorro pedindo documentos. Senhores,
senhores, o que fazem? Não vêem quem lhes fala? Minha capa não basta? Ela não
fala por mim?
Minha capa não falou. Se falou
eles não ouviram. Acho que Zorro já foi mais respeitado. Nem aos heróis acatam,
aonde vai parar esse mundo? Fui dormir sem cavalo nem carro, que os policiais
acharam melhor ficar guardado. Eu não concordei, mas achei exagerado matar
homens da lei. Minha espada eles não levaram, expliquei que a fúria de Zorro é
brutal e que paciência tem limite. Eles, assustados, concordaram, e Zorro foi
dormir com fome.
Felipe Braga Netto
0 comentários
Obrigada por participar do nosso Universo! Seja sempre muito bem vindo...