Crítica Destaque

Rita Lee, uma Autobiografia

00:00Luiz Ribeiro


A memória não tem nada a ver com o passado e não promove surpresas. O papel da memória é fazer um exercício diário de invenção. Com isso, não digo que a memória mente, apenas que ela entende de tempo e de tempos e se atualiza todos os dias no presente com aquilo que somos. E foi assim que me aproximei da autobiografia de Rita Lee. Com o livro na mão, a pergunta que pairava em minha cabeça era: como a nossa rainha do rock inventaria a história do nosso país, a sua própria e de toda a música brasileira a partir do lugar em que está hoje? E a resposta – o livro – não poderia ter sido melhor.
Rita Lee, uma Autobiografia, é o relato da vida da cantora de rock nacional Rita Lee desde seu nascimento, passando pelo seu encantamento com a música, a criação das primeiras bandas e canções, chegando até sua entrada para o grupo Os Mutantes, do qual foi integrante e participou de momentos marcantes da nossa música como os célebres festivais da canção. Após estes primeiros momentos, Rita relata como conheceu seu atual marido, Roberto de Carvalho e seus futuros trabalhos. Tudo isso em meio a centenas de histórias de bastidores, envolvimento com drogas e bebidas, uma confusa prisão e, claro, toda sua produção musical ao longo das décadas.
O que é mais fascinante na escrita de Rita é que sua autobiografia não tem nenhum caráter nostálgico. O passado, segundo ela, não é um lugar que merece ser celebrado, apenas lembrado como parte integrante do que somos hoje. Assim, Rita, em nenhum momento tem piedade dos outros, nem de si própria, sem de suas próprias canções, e se utilizando do seu costumeiro desbunde e liberdade, comenta de maneira leve e trivial sobre todos os acontecimentos de sua vida.
Posso dar alguns exemplos, como sua convivência com os rapazes da banda Os Mutantes, Sérgio e Arnaldo. Rita, que foi namorada de Arnaldo, em momento algum mostra saudade ou amizade com eles. Mostra, sim, admiração por Arnaldo, mas chega a dizer que a relação da banda tinha mais a ver com facilidade de se viver aventuras da casa dos meninos do que com uma identificação pessoal. Assim, um grande mito de nosso cancioneiro cai, a paixão de ambos, pode ser algo altamente relevante para Arnaldo, mas para Rita, foi o que foi, um caso adolescente.
Outra lembrança marcante é de todos os encontros de Rita com a apresentadora Hebe. A discrepância entre o estilo de vida das duas é relatado com um humor e uma paixão absolutamente singelos. Rita lembra de Hebe como uma diva, uma mulher e tanto, com força, garra e humor. Hebe chegou, inclusive, a ajudar a cantora a sair de uma crise com drogas e abriga-la em sua casa, feito que Rita sempre mostrou gratidão. Os selinhos da Hebe? Começaram com Rita que dizia ir ao programa apenas para sentar ao lado da apresentadora e acompanha-la.
E o livro, assim, se torna genial, pois desmonta uma hierarquia que a memória e os livros de história tentam nos impor, engendrando uma horizontalidade das coisas que coloca todas as coisas do mundo no mesmo patamar. Hebe é tal qual o Festival Internacional da Canção e Edu Lobo é apenas uma pessoa que se recusou a falar com “os roqueiros”, enquanto Vinícius de Moraes convidava-os a beber com eles. O Programa do Ratinho, segundo ela, foi um dos lugares em que foi melhor recebida e que teve mais espaço para se expor, ao contrários de outros apresentadores que vivem cortando os cantores. A própria Elis Regina, primeiro vista como uma “típica mulher da MPB”, depois vai encontrar em Rita Lee uma grande amiga, ajudando-a a sair da prisão e formando uma dupla explosiva.
Em se tratando de visão de mundo, Rita é fascinante:
É uma série de imagens que mudam ao se repetirem. É um tal de política destruindo a liberdade, de medicina destruindo a saúde, de jornalismo destruindo a informação, de advogados e policiais destruindo a justiça, de universidades destruindo o conhecimento, de religiões destruindo a espiritualidade. Confie em Deus, mas tranque o carro.”
Rita Lee
É fato, não consigo deixar de ver em Rita Lee a maior força cultural feminina pós-68 do nosso século XX. Diria que são ela, a Elke Maravilha e a Rogéria. O que Rita Lee representa na desconstrução de tudo que é sério, coloca-a num patamar de expoente de contracultura, fazendo da descontração e do humor uma excelente forma de política de desmonte das instituições claras e sérias de nosso país. Para se ter uma ideia, Rita chega a debochar de si própria ao inserir entre as páginas de sua autobiografia um fantasminha que, vez ou outra, aparece para corrigir um fato ou um feito que Rita tenha esquecido de mencionar.
Rita Lee, uma Autobiografia é o livro que o Brasil precisa. Qualquer transformação política que nosso país precisa está nestas páginas, seja para pessoas de direita, seja para pessoas de esquerda. A nossa moça do rock com sua liberdade transformou o que pôde e transformará o que pode e, mesmo em sua aposentadoria, continua assim. Sorte nossa.
*Post original no NotaTerapia

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