Ilustração de Sofia Bonati |
Leio hoje, estarrecida, a fala de Recep Tayyip Erdogan, presidente turco. Em recente declaração, ele disse que mulheres que não têm filhos por conta da carreira "negam sua feminilidade", ficam "incompletas" e são "meias pessoas". Graças a Alá, o raciocínio causou indignação e repúdio dentro e fora da Turquia.
Segundo o ilustre, "uma mulher que renuncia à maternidade dizendo 'estou trabalhando' está na prática negando sua feminilidade". Às vezes estamos no Século 21, outras no Século 18 e, às vezes, voltamos à Idade Média.
Desde quando renunciar à maternidade, por questão profissional ou de outra ordem, é negar a feminilidade? Que visão obsoleta é esta? Qual a lógica deste pensamento? Se alguém souber, por favor esclareça.
Essa mentalidade machista de que mulheres precisam ser mães para se sentirem "completas", que só a maternidade ensina o amor verdadeiro, sempre me enjoou. Quantas mães monstruosas vemos por aí, que maltratam, abandonam, preterem seus filhos por um homem, por uma garrafa de cachaça ou uma pedra de crack? São pessoas inteiras porque pariram e, assim, não negaram sua feminilidade? E aquelas que não geraram vida em seus ventres estão fadadas a ser incompletas, aleijadas enquanto pessoas?
Por favor, parem o mundo que eu quero descer.
Tenho 38 anos e não tive filhos. Ainda. Pode ser que role, vai saber. Queria ter tido, mas priorizei estudos, trabalho, cursos no exterior, enfrentei duras questões pessoais e familiares. E jamais, nem por um átimo de segundo, tive a sensação de estar negando minha feminilidade. Pelo contrário: estou cada dia mais feminina.
Há pouco, por estas bandas de cá, houve a polêmica do "bela, recata e do lar". É quase a mesma coisa. Quase. Porque não disseram que ser "bela, recata e do lar" te torna meia pessoa. Por isso, pessoalmente, considero menos grave – ainda que seja uma visão conservadora do papel e do potencial da mulher na sociedade contemporânea.
Numa época em que as discussões acerca de gênero estão avançando tanto, ouvir uma patifaria dessas é aviltante. Para o tal Erdogan, rejeitar a maternidade e (pasmem) "as tarefas do lar" representa para a mulher "perder sua liberdade". Oi?! Como?
Para nossa sorte (de mulheres e de homens), vivemos em uma época onde declarações idiotas repercutem e geram mobilização. Grupos que defendem os interesses das mulheres já organizam protestos em Istambul e Ancara sob o slogan "A mulher é mulher, é metade só em sua mente". Intelectuais e artistas também se manifestaram.
Se quero ou não, se posso ou não, se pretendo ou não ter filhos, é assunto meu. E isso não faz de mulher alguma meia pessoa. Em vez disso, a empodera sobre seu próprio corpo e destino.
Quer ser machista, Sr. Erdogan? Tens ainda (infelizmente) todo direito. Mas, ao menos, preserve o bom senso.
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