A vida invisível de Eurídice Gusmão
Cia das Letras
A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha
00:00Angélica Pina
Eurídice Gusmão é uma mulher que tem dois filhos, um marido que
sustenta a casa e muitos sonhos e desejos reprimidos, vivendo na década de 40,
no Rio de Janeiro.
Sua irmã mais velha, Guida, fugiu de casa sem explicações e
nunca mais deu notícias, deixando seus pais Seu Manuel e D. Ana arrasados e
Eurídice com o fardo de ter que ser a melhor filha do mundo e nunca dar um
desgosto à família.
“Eurídice tinha abafado os desejos, deixando na superfície
apenas a menina exemplar. Aquela que não levantava a voz ou o comprimento da
saia. Aquela que não tinha sonhos que não fossem os sonhos dos pais. Aquela que
só dizia sim senhora ou não senhor, sem nem mesmo se perguntar para o que é o
sim, ou por que disse não.”
Ela casou-se porque era o que parecia o mais natural a se
fazer e contentava-se em cuidar da casa e das crianças, receber do marido um
beijo na testa quando ele chegava do trabalho e servir em seguida o jantar que
já estava pronto. Acabou tomando gosto pela arte culinária e passou a criar
receitas novas, pratos elaborados, sobremesas extravagantes e tudo que a
imaginação permitisse. Chegou a sonhar com o dia que publicaria um livro, daria
entrevistas e espalharia suas receitas ao mundo. Mas Antenor, seu marido,
tratou logo de cortar suas asas e dizer que jamais alguém se interessaria pelas
ideias de uma dona de casa.
“E Eurídice, que nunca tinha visto a vida além daquela casa
e daquele bairro, ou da casa e do bairro dos pais, achou que o marido tinha
razão. Antenor sabia das coisas. Ele estudou contabilidade, era funcionário do
Banco do Brasil e discutia política com outros homens. Enquanto trabalhava nas
receitas ela tinha certeza de que estava fazendo algo de valor, mas na frente
do marido tudo perdia o sentido.”
Abandonando o prazer de cozinhar, Eurídice entregou-se ao
tédio e à rotina de cuidar dos filhos e da casa, mas como sua mente não
sossegava, logo inventou outra ocupação: adquiriu uma máquina de costura e
passou a criar peças para si, para os filhos e logo para todas as vizinhas que
faziam inúmeras encomendas. Sua casa se tornou um ateliê, que durou até Antenor
descobrir e dar um show histérico expulsando clientes, funcionárias e o desejo
de Eurídice de sorrir e sentir-se útil. Mais uma vez, a mulher voltou a passar
seus dias sentada no sofá, contemplando as unhas ou a estante de livros.
“Se Eurídice queria casar? Talvez. Para ela o casamento era
algo endêmico, algo que acometia homens e mulheres entre dezoito e vinte e
cinco anos. Tipo surto de gripe, só que um pouquinho melhor. O que Eurídice
realmente queria era viajar o mundo tocando sua flauta. Queria fazer faculdade
de engenharia e manter-se fiel aos números. Queria transformar a quitanda dos
pais num armazém de secos e molhados, o armazém de secos e molhados numa
empresa distribuidora de grãos, e a empresa num conglomerado. Mas ela não sabia
que queria tanto.”
A história de Eurídice assemelha-se muito à da maioria das
mulheres que viveu em sua época. Martha Batalha conta, em terceira pessoa, com
toques de um humor sutil e simplicidade nas palavras, sobre a invisibilidade da
mulher e como há não muitos anos atrás a sociedade vivia debaixo de uma
opressão machista que ofenderia a menos feminista de hoje em dia.
Com bastante destreza, a autora entrelaça histórias de
várias outras mulheres à de Eurídice e Guida, como Zélia, a vizinha fofoqueira
que tem motivos de sobra para ser amargurada e descontente, Filomena, uma
ex-prostituta que passou a trabalhar cuidando de crianças e tornou-se
referência no ramo e Eulália, a mãe do solteirão do armazém da esquina que
tinha mania de doenças e o propósito de jamais permitir que o filho se casasse.
A escrita de Martha Batalha tem um estilo todo próprio e
conduz o leitor em uma leitura fluida e bastante agradável. O livro já teve seus
direitos vendidos para o cinema e para várias editoras estrangeiras.
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