Quando a história se torna objeto de análise e estudo, quase sempre se perde a dimensão de que por trás daqueles fatos, daquelas articulações entre estado, nação e disputa de poderes, existem pessoas que, bem ou mal, precisam viver, compor a sua própria história através de seus corpos e daqueles que circundam suas vidas. Neste sentido, não é incomum que diversos artistas pelo mundo, ao recontar momentos históricos, tentem trazer ou suas próprias experiências ou inventar pessoas – subjetividades em movimento – para mostrar que por detrás de toda grande História existem milhares e milhares de histórias de vida. Eis o singular exercício de Um Vida Chinesa – O Tempo do Pai, de P. Ôtié e Li Kunwu.
Uma Vida Chinesa é uma HQ que conta a história do menino Xiao Li e sua vida na história moderna da China desde a criação da República Popular, sob o governo de Mao Tsé-Tung até os dias de hoje. No primeiro volume, chamado O Tempo do Rei, temos o relato completo do nascimento de Xiao Li até sua entrada no exército, chegando até a morte de Mao. A obra, na verdade, é o relato biográfico do quadrinhista Li Kunwu, com roteiro de Philippe Ôtiê.
O mais interessante do quadrinho, além das sensacionais ilustrações e do minucioso acompanhamento dos fatos da história da China, é perceber como o Estado, neste caso, passa a dominar completamente a educação e a vida das crianças e adolescentes de um país. O que vemos, em certo sentido, é como o poder autoritário, em busca de sua manutenção no poder, encontra diversos subterfúgios para conseguir ganhar mais alguns anos ou um pouco mais de fôlego para estender seus tentáculos. Vemos que, mesmo em meio a fome, a miséria e todas as mazelas de um estado falido, após o rompimento com a URSS, Mao ainda conseguia mobilizar famílias e jovens.
Em um primeiro momento, por exemplo, impõe um poder na “união do povo numa vida camponesa”; mais a frente, ele resolve fazer uma revolução contra o passado da China: destrói mitos, histórias feudais, obras de artes antigas, tudo em busca de uma “revolução cultural” que vise destruir os “revisionistas” ou aqueles saudosos do passado. Posteriormente, apela para a criação de uma série imagens de figuras míticas: o camponês ideal, o exemplar do povo e chega até a contar histórias de sua bravura ao atravessar um rio a nado.
Enfim, estamos diante de um misto de personalismo, populismo e capacidade de agregar a todos através de uma ideologia dominante. O menino Xiao, ao lado de tudo isso e sem sequer tomar conhecimento de outros lados da história, não só compra a história como vira fiscal dela, denunciando vizinhos e trazendo a revolução para seu bairro. A cegueira ideológica é tamanha que, a qualquer sinal de “dúvida” entre o que fazer e a previsão de um futuro, Xiao perde a capacidade, inclusive, de pensar:
Assim o mesmo acontece quando todo o exército se vê na iminência de perder seu grande líder Mao:
Com edição primorosa da WMF Martins Fontes, Uma Vida Chinesa – O Tempo do pai é mais um relato afetivo-histórico que nos mostra meandros do poder afetando a vida de cada um dos habitantes de um bairro, cidade, país. É um relato cru, entre o saudoso e o respeito pelo passado e a necessidade de ultrapassar esse período nebuloso. Um livro essencial que mistura história e afeto.
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