Houve três grandes temas no século XX: imperialismo, fascismo e comunismo. O crítico e escritor Christopher Hitchens em “A Vitória de Orwell” (Companhia das Letras, 2010) comenta que George Orwell estava certo sobre os três. Não por outra razão, o historiador Timothy Gaston Ash comentou no New York Review of Books que qualquer pessoa disposta a entender o século passado ainda precisa lê-lo.
Nascido no território indiano em 1903 (morreria prematuramente de tuberculose em 1950), foi batizado como Eric Arthur Blair. Na época, vários cidadãos britânicos a serviço do governo fixaram-se nas colônias a fim de ocupar cargos administrativos. Era o caso do pai de Orwell. O regresso da família à Inglaterra, no entanto, foi rápido. Embora não se pudesse dizer que a família Blair tinha uma posição de destaque no intrincado sistema de classes sociais britânico, isso não impediu a concessão de uma bolsa de estudos a Orwell no prestigiado Eton College, escola preferida pela elite nacional. Além de incutir nos jovens de sangue azul as maneiras e os maneirismos adequados à classe de cavalheiros a que pertenciam, Eton também formara políticos e escritores influentes.
Após se versar nos clássicos e aprender a pronunciar o H com perfeição, o caminho lógico seria o ingresso em universidades de ponta como Oxford ou Cambridge. Orwell, porém, decidiu ir ver o mundo. Trabalhou como policial do imperialismo britânico na Birmânia, atual Myanmar. Após desligar-se do emprego, decidiu viver uns tempos em Paris. Ali foi uma espécie de subalterno do subalterno em hotéis e restaurantes. Pouco depois, já em Londres, andou com mendigos e dormiu em albergues. O romance “Dias na Birmânia” (Companhia das Letras, 2008) recupera sua experiência como policial do imperialismo inglês e expressa algo do ódio que desenvolveu pela brutalidade do jugo imperial. “Na Pior em Paris e Londres” (Companhia das Letras, 2006), um relato em primeira pessoa de seus dias de penúria voluntária, devolve a indivíduos massacrados pela pobreza e pela miséria sua devida humanidade. Sem, contudo, idealizá-los.
Orwell também dedicou seu tempo à situação dos mineiros do norte da Inglaterra. A descrição aterradora da rotina de trabalho desses homens foi transformada em livro. Em 1937, “O Caminho para Wigan Pier” (Companhia das Letras, 2010) era lançado. Não muito depois, ele foi para Espanha lutar contra o fascismo. “Homenagem à Catalunha” (Incluído em “Lutando na Espanha”, Globo, 2006) é o resultado de uma experiência que inclui um tiro na garganta, o combate ao lado do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista) e a perseguição por parte dos stalinistas a serviço da União Soviética. Ambas são obras mais explicitamente políticas. A segunda parte de “O Caminho…” é, ao mesmo tempo, uma defesa do socialismo e uma crítica irônica aos socialistas burgueses de seu tempo: sentimentalistas, doutrinários e profundamente afeitos às distinções de classe. Já a viagem à Espanha pôs Orwell em contato com a violência e manipulação políticas. Além disso, ficou-lhe mais claro que o regime soviético não era muito melhor do que o fascismo que sempre combatera.
No Brasil, ele é conhecido sobretudo por “A Revolução dos Bichos” e “1984” (Companhia das Letras, 2007 e 2009). Mas quando entendemos o que, afinal, fez com que George Orwell se tornasse George Orwell, essas obras se tornam ainda mais fascinantes. Uma parte substancial da resposta é o que pretendo oferecer abaixo com uma lista de cinco razões para lê-lo e três obras indispensáveis.
1) Ele era um grande estilista de sua língua. A escrita de Orwell é um modelo de elegância. Ele rejeitava maneirismos linguísticos, frases rebuscadas e falsa profundidade. Não se trata de uma virtude fácil. Qualquer um que lide profissionalmente com a palavra conhece o grande trabalho de bastidor envolvido no polimento da linguagem. O impulso comum é produzir textos cheios de jargão e com a estrutura sintática típica dos piores momentos da linguagem acadêmica. Orwell não trata o leitor como ignorante e nem exige dele o domínio de termos difíceis. A riqueza e sutileza do pensamento do autor são perfeitamente transmitidas por uma prosa cristalina e objetiva. Orwell, portanto, é um grande expoente da prosa clássica.
2) Ele era intelectualmente honesto. Antes do lançamento de “A Revolução dos Bichos”, Orwell propôs uma pequena alteração na fábula. Originalmente, todos os bichos da Granja do Solar se jogaram no chão quando o moinho foi atacado. Orwell sugeriu que o trecho fosse substituído por este: “… e os animais todos, exceto Napoleão, jogaram-se no chão”. A diferença pode parecer mínima, mas revela o caráter de Orwell. Napoleão é Stálin. E tal como Stálin permaneceu em Moscou enquanto ocorria o avanço alemão (Orwell descobriria isso pouco antes da publicação), Napoleão não se jogou no chão quando o moinho foi atacado. A pequena alteração mostra que Orwell quis ser justo até mesmo com Stálin. Mais dois breves exemplos: no ensaio “Os Escritores e o Leviatã” (1948), Orwell argumenta que os escritores devem engajar-se na política no papel de cidadãos e não enquanto escritores, pois a integridade literária precisa ser preservada. Por fim, ele nunca se submeteu a uma desonestidade intelectual bastante comum em seu tempo: o silêncio perante o horror soviético. À essa desonestidade se somou, nos anos da Segunda Guerra, a covardia. Não era de bom tom denunciar o que se passava na Rússia, aliada na luta contra Hitler. Orwell, que era um homem de esquerda, jamais se calou. E é em parte graças a isso que sua reputação como um escritor politicamente íntegro é infinitamente superior à de intelectuais como Sartre. Este, embora brilhante, preferiu não saber.
3) Ele não gostava de doutrinas rígidas. Em vários momentos de sua obra, Orwell menciona as doutrinas que entravam e saíam de moda na primeira metade do século XX. O catolicismo político, as sustentações intelectuais do fascismo e o comunismo marxista são bons exemplos da rigidez doutrinária que ele rejeitava. Para Orwell, não se deve temer as heresias e não é uma boa ideia interromper uma linha de raciocínio cuja conclusão seja desagradável aos pares. Ele tinha uma saudável desconfiança dos intelectuais e, aparentemente, uma percepção intuitiva de que eles eram bastante suscetíveis a modismos. Sua defesa do socialismo, por exemplo, era muito mais motivada por um senso de humanidade e justiça do que por uma crença em sua inevitabilidade histórica.
4) Ele era um grande ensaísta. Como dito, Orwell é conhecido no Brasil sobretudo por duas obras literárias. No entanto, talvez a maior parte de sua fortuna esteja mesmo nos ensaios. Não há dúvidas de que ele seja um dos romancistas notáveis do século passado, mas é perfeitamente razoável defender que, em matéria de ensaística política, ninguém o supera. A partir de seus ensaios, é possível reparar que o primeiro e o segundo itens desta lista são interdependentes. Afinal, Orwell escrevia não para esconder ou mascarar, mas sim para revelar e desnudar. Sua clareza de expressão era também, portanto, resultado de um compromisso moral. Isso fica explícito ao final do ensaio “A política e a língua inglesa” (1946). Orwell formula aí algumas máximas para guiar a escrita, das quais a última estabelece uma relação explícita entre estilo e motivação:
- Nunca use uma metáfora, símile ou outra figura de linguagem que está acostumado a ver impressa;
- Nunca use uma palavra longa quando uma curta dará conta do recado;
- Se é possível cortar uma palavra, corte-a sempre;
- Nunca use a voz passiva quando pode usar a ativa;
- Nunca use uma expressão estrangeira, uma palavra científica ou um jargão se puder pensar num equivalente do inglês cotidiano;
- Infrinja qualquer uma destas regras antes de dizer alguma coisa totalmente bárbara.
Os ensaios de Orwell, regra geral, não violam as máximas. Independente do assunto, seja ele o fascismo, o comunismo, a guerra ou a literatura, o leitor terá à disposição uma escrita cuidadosa produzida por um indivíduo honesto e independente. Destaco mais alguns: “Um enforcamento” (1931), “O abate de um elefante” (1940), “Política versus Literatura: uma análise de Viagens de Gulliver” (1946), “A prevenção contra a literatura” (1946), “Por que escrevo” (1946), “Tamanhas eram as alegrias” (1947) e “Notas sobre o nacionalismo” (1945). Este último pode ser lido aqui. Todos os outros estão disponíveis em duas coletâneas organizadas pela Companhia das Letras: “Como Morrem os Pobres e Outros Ensaios (2011) e “Dentro da baleia e Outros Ensaios” (2005). Que eu saiba, a edição mais completa disponível em volume único é Essays (2002), da coleção Everyman’s Library Classics & Contemporary Classics. O volume tem quase 1500 páginas.
5) Ele é profundamente atual. Por mais que os temas com os quais Orwell lidava digam respeito a uma época específica, ele conseguiu captar maus hábitos mentais e vícios políticos comuns a todas as épocas. É impossível não notar semelhanças entre a novilíngua de “1984” e os abusos da linguagem politicamente correta dos dias de hoje. Em ambos os casos, trata-se precisamente de impedir que certas coisas sejam pensadas a partir da manipulação da linguagem. Já a opacidade deliberada da má prosa acadêmica e sua disposição para o logro estão bem apresentadas em “A política e a língua inglesa”. A atitude ambivalente de muitos intelectuais perante o autoritarismo e as racionalizações subjacentes estão explicados em “Notas sobre o nacionalismo”. O problema das más condições de trabalho é o mote de “O Caminho para Wigan Pier”. Eu poderia multiplicar os exemplos, mas esses poucos mostram que ainda se aprende muito com ele. Em suma, Orwell é atual precisamente porque é atemporal.
Embora “A Revolução dos Bichos” e “1984” sejam obras certamente indispensáveis, vou omiti-las para poder listar outras, menos conhecidas. Assim, quem quiser se aprofundar um pouco mais se beneficiará muito de “O Caminho para Wigan Pier”, “Homenagem à Catalunha” e da coletânea “Como Morrem os Pobres e Outros Ensaios”. O primeiro é um bom resumo da conhecia empatia de Orwell por pessoas simples e comuns. O segundo narra a experiência política que mais o marcou. E o último é uma excelente seleção de ensaios, capaz de apresentar ao leitor o Orwell menos conhecido entre nós: o grande ensaísta.
Aluízio Couto é formado em filosofia. Tradutor nas horas vagas, gosta de prosadores como George Orwell, Nelson Rodrigues, Gay Talese, Theodore Dalrymple e Roger Scruton.
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