Matérias Literárias Mia Couto

Mia Couto, uma outra literatura em língua portuguesa

00:00Isabela Lapa

É comum, para nós brasileiros, imaginar que o português é uma língua falada no Brasil e em Portugal. Apenas. Desde que entramos na escola, sabemos que em Portugal nasceu Camões, que de tão grande escritor, a ele é atribuída a paternidade da língua literária portuguesa – “língua de Camões”. 

Como a África é um continente esquecido ou referido apenas pelas suas dores, nem nos é dado imaginar que lá, alguns países também foram colonizados por Portugal e têm o português como língua oficial: Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe. Se pela distância ou mesmo pela diversidade cultural, nem levamos em conta que, na Ásia, igualmente existem nações em que usam a língua portuguesa oficialmente: Timor-Leste, Goa e Macau, esse um pequeno território que fica na costa sul da China. 


Quando dizemos língua pensamos na fala e na escrita. E quando falamos em escrita, pensamos nos diversos tipos de textos que podem ser escritos, dentre eles os textos literários. Se iniciei falando de Camões, acabei por me lembrar de Eça de Queirós, Gil Vicente, Florbela Espanca, Camilo Castelo Branco, todos esses autores portugueses de muitos anos atrás. Hoje sei, e muitos sabem de autores portugueses contemporâneos, como Lídia Jorge, Maria Gabriela Llansol, Gonçalo Tavares, Helder Macedo, Herberto Helder, Antônio Lobo Antunes, Margarida Paredes, Inês Pedrosa, Filipa Melo, Rui Zink, Teolinda Gersão e Agustina Bessa-Luís (tanta gente desconhecida por nós!) e Saramago, um grande conhecido pelos brasileiros, que foi premiado com o Prêmio Nobel. 


Nesse artigo, vou deixar de falar dos autores de ontem e de hoje de nossa língua portuguesa brasileira. Muito haveria de falar. A literatura escrita no Brasil acontece desde o século XVI, quando o país era colônia de Portugal. Portanto, a literatura brasileira já criou raízes e vínculos com nossa cultura e muitos são os nomes que poderiam ser lembrados. O que muitos não atinam é que, além de no Brasil e Portugal, nos outros países de língua portuguesa, existe também uma Literatura de boa qualidade.
Gostaria de falar de Mia Couto, um autor nascido em Moçambique, na África, em 1955. Moçambique deixou de ser colônia de Portugal em 1975 e por esse motivo, Mia Couto, nascido, criado e tendo feito seus estudos em Moçambique, se diz mais velho que o próprio país. Não é ele o primeiro autor africano em língua portuguesa e nem o único, pois em Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe fazem literatura há algumas dezenas de anos. Dentre os autores africanos, o escritor Mia Couto tem se destacado, escrevendo contos, romances, poemas e artigos jornalísticos, usando as palavras de uma forma muito original para expressar as vozes dos povos africanos, vozes essas caladas há séculos, pela lei do colonizador. Seus livros têm despertado o interesse de críticos literários de diversos lugares do mundo e, melhor do que isso, tem agradado ao público leitor, que aprecia romances e contos em que haja construções lingüísticas inovadoras, neologismos e também situações mais parecidas com o fantástico, com o realismo imaginário, com o poético. 

Com a intenção de mostrar um pouco da linguagem de Mia Couto, que leu Guimarães Rosa e que, a partir daí, soube que lhe era permitido fazer uso da sonoridade da própria língua falada para construir um belo texto escrito, transcrevo uma passagem do seu belo romance “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”, na qual é narrada a morte do Avô Dito Mariano. Avô Mariano é o personagem deste romance, ao redor do qual, é tecida toda a trama da história:
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“Por fim, alguém me dizia como falecera o Avô. Acontecera do seguinte modo: a família se reunira para posar para uma fotografia. Alinharam todos no quintal, o Avô era o único sentado, bem no meio de todos. O velho Mariano, alegre, ditava ordens, distribuía uns e outros pelos devidos lugares, corrigia sorrisos, arrumava alturas e idades. Dispararam-se as máquinas, deflagraram os flashes. Depois, todos risonhos, se recompuseram e se dispersaram. Todos, menos o velho Mariano. Ele ficara, sentado. Sorrindo. Chamaram-no. Nada. Ele permanecia como que congelado, o mesmo sorriso no rosto fixo. Quando o foram buscar notaram que não respirava. O seu coração se suspendera em definitivo retrato.”
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Para alguém que gosta mesmo de ler, que vai ficar curioso para conhecer toda a história de “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”, deixo algumas falas atribuídas ao avô Dito Mariano, que é dado como morto desde o início da narrativa, mas parece um vivo durante toda a trama:


“ O importante não é a casa onde moramos.

Mas onde, em nós, a casa mora.”


“Se eu não creio em Deus?

Lá crer, creio.

Mas acreditar, eu acredito é no Diabo.”



“Cada um descobre o seu anjo

Tendo um caso com o demônio.”




“ O mundo

já não era um lugar de viver.

Agora, já nem de morrer é.”

E, para terminar, seguem dois provérbios africanos, que ajudam na construção da história:

“Foi na água mais calma que o homem se afogou.” 
“A lua anda devagar mas atravessa o mundo.”


*Mia Couto (Antônio Emílio Leite Couto,) nasceu na Beira, Moçambique, em 1955. Foi diretor da Agência de Informação de Moçambique, da revista Tempo e do jornal Notícias de Maputo. Estudou Medicina e Biologia e é atualmente biólogo na reserva natural da Ilha da Inhaca, em Moçambique. Publicou: Raiz de Orvalho (poemas); Vozes Anoitecidas (contos); Cada homem é uma raça (contos); Cronicando (crônicas),Terra Sonâmbula (romance), Estórias Abensonhadas (contos), Varanda de Frangipani (romance), Contos do Nascer da Terra; Mar me quer (romance) , Na Berma de nenhuma Estrada e outros contos (contos); O Gato e o Escuro (infanto-juvenil); A chuva pasmada (infanto-juvenil); O Último Voo do Flamingo (romance); Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra (romance), O Fio das Missangas (contos); Cada homem é uma raça (contos); O outro pé da sereia (romance); Venenos de Deus, remédios do diabo (romance); Antes de nascer o mundo (romance); Intervenções (artigos de opinião).


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