Crônica
Escritor Marcelo Lemes
Quando o mundo é um espelho de moldura dourada
08:20Universo dos Leitores
Debruçar-se na janela da inspiração e visualizar uma paisagem de novas expectativas faz qualquer pessoa de boa razão acreditar que, na manhã seguinte, sairá da cama revigorado, sem a típica desmotivação de ter mais um dia para carregar nas costas. Isso é válido e, de certo modo, até admirável. Mas o sonho termina exatamente quando abrimos os olhos e colocamos os pés no chão ao amanhecer.
Ilusões ilustradas pela própria ilusão podem ser um veneno letal. Sonhar alimenta o espírito e, talvez, seja tão importante quanto o oxigênio. O problema é quando o ato de criar miragens, para anestesiar a própria desesperança, substituiu, por exemplo, o ato de colocar comida quente na boca daqueles que têm fome.
É muito fácil e praticamente uma obrigação de mercado desejar o melhor para si mesmo, fazer planos luminosos para o ano que acaba de começar e se embriagar de estratégias inteligentes para arquitetar uma vida superior. Difícil é parar no sinal, abrir o vidro do carro, perceber a desilusão nos olhos do morador de rua, que amanheceu sem café e há anos procura sustento em latas de lixo, estacionar o carro na primeira vaga e fazer o possível para acender uma faísca de esperança na existência do desiludido.
Não é errado utilizar boas ilusões para abastecer os mais imprevisíveis motivos que nos fazem continuar empurrando a rotina apesar de tudo. Aliás, de alguma forma, isso é até necessário. No entanto, é desprezível cair na estupidez de achar que o mundo se resume a um espelho de moldura dourada, no qual o observador vê apenas o tamanho das próprias vontades, contabiliza as próprias carências e considera um azar hediondo não possuir tudo aquilo que quer.
Eis o grande panorama do mundo. Enquanto uns se preocupam com a etiqueta da próxima roupa, o modelo do próximo carro e o destino daquela viagem que poucos na roda de amigos fizeram, outros ganham o dia se o estômago não reclamar de vazio antes de dormir. Quais seriam os sonhos daqueles cuja saga diária é, simplesmente, matar a fome? Que expectativas eles têm desta vida que, sem nenhum disfarce, disponibiliza as futilidades mais desnecessárias para a satisfação fútil de alguns, na mesma proporção que não oferece nem mesmo dignidade humana a eles?
Dizem que cada um possui aquilo que merece. Não sei. Talvez vidas passadas expliquem. Provavelmente isso faça parte de um esquema cósmico, o qual não nascemos para compreender. Assim, alienados por essa incompreensão, deixamos o egocentrismo tomar conta de nossas vidas. Cegos, vemos, no miserável que dorme na rua e come lixo, uma oportunidade de olhar para o céu e agradecer por não estar na mesma condição. Sim, a humanidade consegue ser desprezível. É vergonhoso olhar para o espelho e reconhecer uma lista de necessidades desnecessárias que nos corroem.
Melhor seria se usássemos a cortina da consciência para fechar as janelas da inspiração, lavássemos o rosto pela manhã sem olhar no espelho e utilizássemos recursos possíveis para abrir a porta das oportunidades fundamentais àqueles que realmente não conhecem a luz de um sonho e, muito menos, o vazio das futilidades que enganam a pobreza dos ricos. Ou seria o contrário?
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