Imagina. Você mora em João Pessoa. Professora de francês que acaba de se aposentar. Mora sozinha, que a filha única vive com o marido em Porto Alegre, onde são professores universitários. Viveu e criou a filha com o que ganhava do ofício de dar aulas, que o marido, militante político, desaparecera na época da ditadura militar, sem nunca mais dar sinal de vida. Sente-se pronta para viver o seu tempo, dona de seus próprios horários, de seus livros, do seu querer, do cuidar de seu minúsculo apartamento. Dispõe de uma bela praia para desfrutar a cada dia naquele lugar ensolarado, de gente calorosa, apesar das dificuldades próprias a todo ser humano compensadas pelas alegrias que nascem no fundo da alma. De repente, para satisfazer o querer da filha, você é levada a se mudar para Porto Alegre, cidade de que tem na lembrança a friagem e o tempo quase sempre nublado. Sem o mar para contemplar a cada fim de tarde. Não entende a razão, ou entende, mas cede aos rogos da filha, que ela e o marido querem ter filhos, era hora, beiram os trinta e cinco e, como professores estudiosos e ocupadíssimos, não podem cuidar das crias sem a sua ajuda, que já está na hora de ser avó. E, afinal, segundo a filha, você já não tem mais o que fazer em João Pessoa, precisa ocupar o seu dia. Acontece que, quando você chega a Porto Alegre e ocupa o apartamento minúsculo -mas com suíte- alugado e mobiliado pela filha, recebe a notícia que o casal vai partir para a Europa na semana seguinte. Mais estudos. Devem ficar por lá por seis meses, quem sabe um pouco mais. Você não leva quase nada, que a filha, com ajuda da prima Elizete, faz com que seus móveis, uma cacaria, e grande parte de suas roupas, velharias, fossem vendidos em “garage sales”, que a prima entende disso. O que era de bom, um tiquinho de nada, embalam e mandam por transportadora. Imaginou?
Mais ou menos isso. Assim, começa a história de Alice, a narradora de “Quarenta dias”, de Maria Valéria Rezende, paulista nascida em Santos, viajada pelo mundo, estabelecida no nordeste e que há quase vinte anos vive na cidade de João Pessoa. “Quarenta dias” é um romance de 245 páginas que a gente lê numas três sentadas. (Quem é leitor entende desse falar sobre a leitura literária.) Um texto enxuto, escrito em linguagem coloquial, que faz o leitor sentir, opa, estou em casa ou, esta é a minha praia. Agarra-se ao livro que o acompanha em casa e até mesmo quando vai sair, vai que tem que ficar garrado no ônibus ou à espera de um compromisso, então lê mais umas páginas. Toca o telefone, vibra o celular, berra o interfone, chega alguém perto – os olhos leitores pregados nas palavras escritas, a ideia a caminhar pelas ruas e favelas de Porto Alegre, à procura de um tal de Cícero Araújo, que Alice nem sabe quem. É que a prima Elizete ligara de João Pessoa e pedira para ela investigar. Filho de sua manicure, que havia ido trabalhar numa construtora de Porto Alegre, perdera o emprego e há mais de ano não dava mais notícias, coitadinha da mãe. Do endereço, a mãe sabia só o nome da vila, Maria Degolada. Isso.
Todo mundo conhece a Barbie. Essa mesmo. A boneca americana que há décadas faz parte dos sacos de brinquedos das crianças do mundo e até hoje é produzida aos zilhões. Na China. A Barbie, como leitora, vejo que é a grande sacada da escritora Maria Valéria Rezende nesse romance. Imagina. Um interlocutor mudo, calado, em que você pode despejar sem dó e piedade seu palavrório, seus xingamentos, suas dores, suas alegrias e ele apenas lhe olha. Ou você pensa que olha. A “personagem” Barbie (Thank you, Barbie!) é a figura da capa de moldura cor-de-rosa de um caderno antigo, de 300 folhas amareladas, que havia ido junto com as poucas coisas de Alice que haviam sobrado da operação seletiva da prima e ela nem sabia o porquê. A Barbie capa de caderno passou a ser o ponto neural, um para-raios. (A psicologia, a psicanálise devem ter mais coisas a falar da Barbie.) Ela nem ainda havia ainda escolhido um lugar para cada coisa que havia levado para a nova morada, quando a filha lhe comunicou que partia para a Europa. E ela? Ficaria sozinha naquela grande, para ela ainda um papel em branco. Ficou sem atender campainha nem telefone por alguns dias, que não queria falar com ninguém, só atendeu a faxineira que o porteiro havia lhe arrumado, mulher do nordeste em quem ela sentiu firmeza. Após receber o telefonema da Elizete, ela sai sem rumo, com a bolsa que trouxera na viagem e a roupa do corpo. O objetivo, que ela passa a chamar de álibi, era procurar o Cicero, coitada da mãe, ela sabia o que era ter um parente desaparecido. E Alice acaba ficando quarenta dias perambulando pelas ruas do centro e dos bairros pobres e favelas de Porto Alegre. Pensa! Como moradora de rua. Isso.
Quando Alice quer retornar a casa, da qual nem sabe a rua e nem o rumo, ela liga para a Elizete, diz que havia ido ver uns amigos do nordeste numa cidade vizinha, que estava de volta e havia perdido a anotação com o endereço. A jornada dos quarenta dias, ela escreve no caderno pautado a falar com a Barbie, sua “dear friend”. E não vou revelar nada do que aconteceu naqueles dias, que é tudo cheio de muitas vozes, de coisas vividas num país que tem jeito sim, que depende do jeito de cada um viver e encarar a vida.
"Que a rua é cheia de coisas sem muita serventia, Barbie, do mesmo jeito que os quartos das meninas de hoje que você costuma frequentar, só o preço é que difere.”
Mesmo sem contar mais nada, vou deixar aqui umas coisinhas que Alice, xará da outra, a do País das Maravilhas, fala com Barbie sobre o momento de vida em que ela “nem teve tempo de tentar parar antes de despencar no que parecia ser um poço muito fundo.” (Ou numa “barca do inferno”?) Para falar do livro, gastaria um livro inteiro, juro.
“Você leu ‘Alice no país das maravilhas’, Barbie?, leu nada! Você deve ser analfabeta de pai e mãe, não entende essas coisas que eu digo. Deixa pra lá, eu estou dizendo pra mim, pra ninguém”
“Nada, Barbie, isso que escrevi até aqui não tem nada a ver com o que preciso desabafar, não estou conseguindo abrir de verdade o baú da confusão, mas escrever, seja lá o que for, me acalma.”
“Oi, boneca, bom dia. Acabo de folhear seu caderno e dar uma lida em diagonal nas últimas páginas. Reparou que muitas folhas atrás parei de falar de minha filha? É bom ou mal sinal?”
“Vou enrolar um pouco mais, se eu falar logo de Cícero e ela disser que não sabe de nada, se desinteressar, vou ter de ir embora, mas ela parou e virou-se para mim, Então, já resolveu alguma coisa? Quer voltar daqui a uns quinze dias? ou quer que eu lhe ensine o endereço da outra? Demorei a responder, avoada, saudade faz isso com a gente, sabia, Barbie? Você algum dia já teve saudade? Nada, na sua língua nem existe essa palavra.”
Bom. Sorry, Barbie. Paro por aqui. Quem quiser topar com uma literatura incrível, que encontre a Alice e a Barbie e uma porção de gente como a gente em “Quarenta dias”.
(O livro recebeu o Prêmio Jabuti-2015, na categoria romance)
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