A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison Brasiliana Steampunk

Vapores Marginais & Literaturas Fantásticas: entrevista com Enéias Tavares

00:00Universo dos Leitores

Enéias Tavares mora em Santa Maria da Bocarra do Monte, uma pequena cidade a trezentos quilômetros de Porto Alegre dos Amantes, na companhia de seu cão de guarda disfarçado de bengala, Adamastor, e de suas duas panteras, Mona e Penélope. Povoam seu mausoléu escorpiões robóticos, candelabros vitorianos e tomos arcanos de eras passadas. Dizem que ele sai pouco de casa. Mas também dizem que é professor de literatura clássica na UFSM e que, no geral, é um sujeito bem comum. Exceto quando o assunto é sua série de literatura fantástica: Brasiliana Steampunk. Nesta entrevista, o Universo dos Leitores discutiu com o autor literatura fantástica, cultura steampunk e seu processo criativo, entre outros assuntos divertidos.

Enéias, o livro A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison venceu o prêmio da Casa da Palavra/Leya e foi escolhido entre diversos outros títulos. A obra é original, inteligente e tem personagens muito marcantes. De onde vieram as suas principais inspirações?

Que bom que gostaste do livro Isabela. Minhas influências vêm literalmente de dezenas de lugares. Dos quadrinhos de Alan Moore, Neil Gaiman & Garth Ennis. Dos romances de Anne Rice, Thomas Harris & J. K. Rowling. Dos filmes de Stanley Kubrick, Ridley Scott & Christopher Nolan. Da música de U2, Radiohead & Muse. Das séries de televisão de David Lynch, Alan Ball & Brian Fuller. Das pinturas de Dave McKean, Francis Bacon & Gustave Moreau. Além disso, de uma carreira acadêmica que me aproximou das obras iluminadas de William Blake e dos decadentistas franceses. Minha formação como professor de literatura brasileira e portuguesa também me auxiliou a ler os romances da tradição brasileira com curiosidade & interesse, mesmo o mais desafiadores, como O ateneu, de Raul Pompeia, por exemplo, livro que igualmente adoro e lastimo.

Ao longo da leitura do seu livro percebemos várias referências à literatura e à cultura em geral. Esses detalhes enriqueceram o trabalho e demonstraram que você é um profundo estudioso da literatura. Qual a sua formação e a sua área de atuação? 

Sou formado em Letras – Português, Inglês e respectivas literaturas, pela Universidade Federal de Santa Maria, instituição na qual acabei me tornando professor anos depois. Meu mestrado e doutorado foram em Literatura Comparada, com ênfase em literatura inglesa. Minha dissertação foi sobre Otelo de Shakespeare e minha tese sobre a poesia e a pintura de William Blake. Hoje, leciono literatura clássica na graduação e trabalho com poéticas interartes na pós-graduação, além de traduzir e orientar trabalhos sobre a obra de Blake. Apesar de ter me centrado na literatura canônica, nunca me afastei da literatura popular e dos quadrinhos, que sempre foram uma grande paixão.
O seu livro compõe o gênero literário conhecido como "steampunk". Quais os elementos essenciais desse estilo?

Primeiro, uma visão futurista do passado, que dá origem ao termo “retrofuturismo”. Segundo, a possibilidade de se jogar numa mesmo caldeirão alta cultura, literatura popular, história que foi ou que poderia ter sido e aventuras de suspense ou fantasia. Além disso, a ideia de diminuir as distâncias entre ficção e realidade, uma vez que muitos artistas steampunk são também performers que possuem outros nomes e biografias imaginárias. Trata-se de um gênero que inspira o “faça você mesmo”, ao invés do se adequar à cultura do “comprar pronto”, que define o estilo de muitas pessoas em nossos dias. Para mim, trata-se de um salto imaginativo no presente, fazendo coabitar no aqui e no agora aquilo que poderia ter sido e aquilo que poderá ser. Por fim, é um gênero absolutamente sexy & divertido, que investe no “faz de conta” e nas roupas estilosas e charmosas. 
Quando e por que você decidiu se dedicar a esse estilo literário?

Há uns dois anos. O enredo principal de “Lição de Anatomia”, centrado no conflito entre o investigador Pedro Cândido e requintado assassino Antoine Louison data de 2009. Mas foi apenas em 2013 que eu adicionei a esse plot – que era uma imitação bem ruim dos romances de Thomas Harris – os heróis da literatura brasileira como vozes narrativas e os elementos steampunk como constitutivos da ambientação desse mundo. Foi só aí que o romance ganhou forma e série um título: Brasiliana Steampunk. Então, ainda me considero bem inexperiente no que concerne ao gênero. Felizmente, os amigos do Conselho Steampunk, em especial das lojas São Paulo e Rio de Janeiro, estão me auxiliando bastante, além de divulgarem a série com grande paixão, o que eu só tenho a agradecer. Sinto-me escrevendo um romance e ganhando, além de leitores e leitoras apaixonados, um grande número de amigos e companheiros de aventura. 
Como está a receptividade do público com esse gênero tão inovador? 

Muito boa. O steampunk já chegou há tempos, estando seu estilo, seu visual & muitos de seus preceitos já presentes – apesar de excessivamente diluídos – em histórias em quadrinhos, filmes, séries, romances e tantos outros produtos culturais. Ele chegou à moda, e com grande impacto, especialmente se levarmos em conta estilistas como Alexander Mcqueen, por exemplo, ou a coleção de 2010 de Christian Dior, entre outros. Então, a recepção positiva do público se dá muitas vezes mais em razão de um reconhecimento do que de uma completa novidade. Depois do charme cyberpunk das roupas de couro e das camisetas e calças rasgadas, chegou o momento de redescobrirmos a beleza dos casacos vitorianos, dos vestidos rendados & dos corsets sensuais.

No Brasil existem outros autores que trabalham com essa linha?

Sim, vários. Tivemos, por exemplo, entre 2009 e 2014 as coletâneas Steampunk e Retrofuturismo da editora Tarja e os dois volumes de Vaporpunk, da editora Draco. Esta publicou também os romances O Baronato de Shoah (2011), de José Roberto Vieira, e Homens e Monstros (2013), de Flávio Medeiros Jr. Tivemos igualmente outras coletâneas similares, com destaque para Steampink (2012), da Editora Estronho, apenas com textos de autoria feminina, além da coletânea Dystopia (2013), organizada por Raul Cândido, e do projeto multimídia de Bruno Accioly, Crônicas Póstumas que faz uma releitura ousada e divertidíssima dos heróis de Machado de Assis. Por fim, destaco o lançamento o romance de Andre Cordenonzi, Le Chevalier e a Exposição Universal (2015), da editora Avec. Em quadrinhos, temos também a Graphic Novel Steampunk Ladies, da Editora Draco, de autoria de Zé Wellington e Di Amorin. Neste panorama, Lição de Anatomia não é tão inédito assim, apesar de apresentar elementos bem inovadores, se pensarmos no que estava sendo produzido até então, e de significar a “entrada” do gênero numa grande editora como é a LeYa. Em outros termos, o que antes era um subgênero de Ficção Científica ganha agora mais e mais relevo como uma das principais tendências em termos de cultura nerd ou geek.

Em sua opinião, como está o mercado literário no Brasil?

Sempre gosto de ver o mercado – como também a vida – com olhar otimista. Estamos vivendo um ano difícil, de relativa recessão econômica, o que deixou muitas editoras maiores receosas de grandes investimentos e estagnou editoras de médio e pequeno porte. Por outro lado, as livrarias continuam cheias de novos lançamentos e de novos compradores, quando não de novos leitores. Então, apesar do discurso apocalíptico corrente sobre a crise e a “aparente” diminuição do público leitor divulgada em pesquisas que considero bem problemáticas, o que tenho visto nas redes sociais e nas feiras é um público leitor muito fervoroso e animado. Nunca se falou tanto em indústria criativa e se valorizou tanto a cultura jovem. Como não ficar feliz com isso? Do resto, é o de sempre: trabalhar muito, fazer de tudo para divulgar a obra e estar acessível aos leitores, além de criar e planejar estratégias inteligentes, hoje dia, cada vez mais colaborativas. Neste momento, por exemplo, estou trabalhando com mais de vinte pessoas em Brasiliana Steampunk, entre editores, desenhistas, ilustradores, fotógrafos, vídeo bloggers, ilustradores e web designers. Esse é o grande barato: conversar com pessoas e criar conteúdos que sejam divertidos e excitantes. Não conseguiria nem um décimo da exposição que “Lição de Anatomia” está tendo sem esses parceiros.
Como é, para você, o processo de construção de uma história?

Eu trabalho de uma forma organizadamente assistemática. Primeiro, trata-se de pensar na história em linhas gerais, num problema de estrutura ou no conflito principal, ajustado ou não ao gênero (horror, aventura, suspense etc). Depois disso, traço uma estrutura ampla do enredo, sem detalhar muito, uma vez que não consigo dispensar a própria aventura da escrita, a incerteza do seu desenvolvimento ou a surpresa com respeito aos lugares emocionais aos quais uma história ou um personagem pode me levar. Depois disso, reescrevo e reescrevo e reescrevo, atentando para o estilo da voz narrativa e para a sonoridade final do texto, lendo-o duas ou três vezes em voz alta. Como adoro poesia, acho que uma história deve prender o leitor duplamente: pela ritmo do enredo e pela melodia de suas frases. Em termos gerais, tento produzir uma história que eu adoraria ler. Acho que escrever literatura é isso: dar vazão a uma história que você, enquanto leitor, adoraria ler.

Quais os pontos essenciais para que um livro faça sucesso?

Essa pergunta está relacionada profundamente à questão anterior. Eu sou um escritor bem sério e pretensioso, pra não dizer hiperbólico, sempre interessado em contar grandes aventuras com grandes aventuras com heróis e heroínas vivendo grandes paixões. Por outro lado, adoro me divertir e penso que meu principal objetivo como escritor é esse: produzir um puro e belo entretenimento. Se, acima de tudo, uma história não fizer isso, ela não tem validade. Então, como regra geral, penso que se uma história me divertir como escritor ela minimamente divertirá os leitores. Acho essa fórmula fundamental e acho que perdemos muito quando produzimos um texto que não respeite isso.
Quais são os seus próximos projetos? Pode contar alguma coisa para os fãs?

Eu estou tralhando em tempo integral na série Brasiliana Steampunk. Além de estar escrevendo o segundo romance, que tem título provisório de “O Parthenon Místico” e que se passará antes de “Lição de Anatomia”, tenho escrito diversos contos e produzido uma grande variedade de materiais complementares que estamos disponibilizando na página oficial. Do resto, estou interessado em criar outros produtos derivados, como uma caixa especial da série, alguns vídeos divertidos – como o Manifesto Brasiliana Steampunk –, além de jogos de tabuleiro ou de RPG, dependendo de para onde os ventos favoráveis nos lançarem. Nessas diversas empreitadas, estou tendo o apoio da editora Casa da Palavra/LeYa, a cuja equipe sempre agradeço, como também do Grupo EPIC, que é uma das coisas mais legais que surgiram nos últimos tempos em termos de bens e serviços relacionados a Economia Criativa.

Você é sempre ativo e participativo nas redes sociais. Acha que elas exercem um papel importante na divulgação da literatura?

Sem dúvida. Brasiliana Steampunk deve muito às redes sociais e à internet como um todo, que definitivamente encurtou distâncias, praticamente anulando muitas das dificuldades que um autor iniciante como eu teria, ainda mais vivendo bem afastado dos grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro. Ainda acho incrível que consiga me comunicar tão bem com tantas pessoas, que vão do sul ao norte do Brasil. Por outro lado, faço o possível para participar de eventos e encontros literários, uma vez que também defendo a experiência presencial de se estar perto dos leitores, ouvir suas vozes, trocar ideias. No próximo agosto, por exemplo, eu e o Andre Cordenonsi, estaremos na III SteamCon de Paranapiacaba, o maior evento steampunk do Brasil. Hoje, mais do que nunca, essa proximidade, seja virtual ou presencial, é importantíssima a qualquer projeto criativo.

Quais autores nacionais da atualidade que você acha que todos devem conhecer?

Poderia citar diversos autores, mas destaco o José Roberto Vieira com a sua série de fantasia steampunk O Baronato de Shoah, atualmente publicado pela editora Draco. De literatura fantástica, indico Affonso Solano e o seu Espadachim de Carvão. Além de escritor superlativo, é essa figura simpática e enérgica que todos conhecemos. Adoro também a Ana Cristina Rodrigues, tanto por seus textos críticos como também por sua obra ficcional. Desta, destaco Anacrônicas, uma coletânea deliciosa e divertidíssima publicada este ano pela Editora Aquário. De autores que releem nossa tradição nacional, destaco Christopher Kastensmitd com A Bandeira do Elefante e da Arara, série literária que já foi transposta pros quadrinhos e que em breve virará jogo de tabuleiro pela Devir Editora e RPG, além do Felipe Castilho e o seu Legado Folclórico, cujo terceiro volume será lançado pela Editora Gutenberg em breve. A diferença é que o primeiro centra sua fábula no Brasil colonial enquanto o segundo na contemporaneidade. Literatura fantástica de ótima qualidade. Também destaco a série épica de fantasia de Graciele Ruiz, O Senhor da Luz. Estou particularmente apaixonado pelo trabalho do Bruno Alselmi Mantagrano e da Carol Chiovatto. Além de escritores, são os responsáveis pela tradução e pela edição lindíssima de O Mundo de Oz de Frank Baum pela editora Vermelho Marinho. Por fim, sugiro Eric Novello e o seu Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, que é um dos melhores romances adultos e fantásticos dos últimos anos, entre muitos outros autores e obras que tenho acompanhado com bastante alegria. Como podem ver, estamos vivendo um grande momento para a literatura fantástica nacional.

Enéias, muito obrigado pela entrevista.

Eu que agradeço o convite, Isabela. E parabéns ao trabalho da equipe do Universo dos Leitores. Adoro as matérias e as resenhas do site. Um grande abraço a você e aos seus leitores & leitoras.

Veja: a resenha do livro A Lição de 



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1 comentários

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