Will Eisner foi sem dúvida um dos grandes inovadores dos quadrinhos, sendo um dos responsáveis pelo desenvolvimento da narrativa, das possibilidades expressivas e temáticas das HQs norte-americanas. O autor falecido em 2005 levou para as páginas de suas histórias o cotidiano e os conflitos pessoais dos habitantes das grandes cidades, representando-os através de um estilo inconfundível. E é isso que encontramos nas páginas de No Coração da Tempestade, graphic novel lançada no Brasil originalmente em 1996, em dois volumes pela editora Abril.
Concluída em 1990, No Coração da Tempestade é, segundo o próprio autor, “uma mal-disfarçada autobiografia”. Nas primeiras páginas encontramos Willie (Eisner), um jovem cartunista norte-americano convocado para servir o exército, em plena Segunda Guerra Mundial. Na viagem em direção a uma base militar, enquanto outros recrutas passam o tempo conversando ou lendo jornais, Willie mergulha em suas lembranças. Utilizando um artifício engenhoso, o autor imprime um caráter de “memória” à sua narrativa: as imagens que Willie vê através da janela do trem remetem a lembranças de seu passado. Assim, uma garota andando de bicicleta faz surgir lembranças de uma antiga namorada, um menino vendendo jornais faz com que ele se lembre de seu primeiro emprego.
Somos, assim, convidados a uma viagem em que as imagens saem da memória de Willie direto para o papel. Contudo, em momento algum, o personagem assume explicitamente a função de narrador, sendo na verdade a figura central de uma HQ repleta de muitos outros personagens. Boa parte das páginas é dedicada à história de seus pais: ora é sua mãe que conta suas desventuras nos Estados Unidos do início do século 20, ora é seu pai que narra porque foi parar na América, após trabalhar como pintor em Viena. Mas, confusões de infância, interesses eróticos e o início da carreira como cartunista são lembranças que devolvem Willie ao centro da narrativa. Trabalho de um verdadeiro mestre, a história é contada com uma precisa variação de formas e disposições de quadros, aliada a um eficiente emprego das massas de claro e escuro.
O universo descrito em No Coração da Tempestade é o do final do século 19 e da primeira metade do século 20. Relações familiares, crises sociais e o clima de guerra compõem o “pano de fundo” para a trajetória da família de Willie. Os subúrbios nova-iorquinos (com seus imigrantes multinacionais) e os cafés europeus (com seus artistas e vida cultural agitada) fornecem o ambiente para a história contada por Eisner. Os personagens, construídos a partir de experiências pessoais do autor ou relatos de seus pais possuem um incrível realismo. Como se tornou recorrente nos trabalhos do quadrinista, uma questão presente ao longo dessa HQ é o preconceito sofrido pelos judeus. Mas aqui o autor não nos mostra a perseguição aberta e violenta empreendida pelos nazistas nos anos 30 e 40, mas o preconceito das pessoas em geral, presente no dia-a-dia.
No Coração da Tempestade foi o melhor lançamento em quadrinhos a chegar às bancas em 1996. E isso apesar da impressão e acabamentos meramente comuns, empregados pela Abril Jovem na época. Felizmente, essa ótima graphic novel de Will Eisner receberia, mais tarde, uma reedição brasileira com a qualidade gráfica que ela merece.
Wellington Srbek, nasceu em Belo Horizonte em 1974. É doutor em Educação e graduado em História pela UFMG, autor e editor de histórias em quadrinhos premiado nacionalmente. Profissional com vinte anos de experiência na criação e edição de revistas e livros, textos informativos e literários. É autor de trabalhos consagrados como o álbum Estórias Gerais e a série Solar, bem como de HQs infanto-juvenis e adaptações literárias.
Resenha originalmente publicada no blog Mais Quadrinhos.
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