Companhia das Letras Contos

Objecto Quase, de José Saramago

00:00Universo dos Leitores


Ler Saramago é sempre uma experiência incrível, já que ele tem uma capacidade ímpar de retratar o ser humano com o seu pessimismo, a sua alienação, as suas opressões, falhas e imperfeições. 




Nesse livro, que reúne seis histórias originalmente publicadas no ano de 1978, o genial escritor nos leva por caminhos variados, mas todos eles apresentam situações inovadoras e absolutamente críticas, que permitem reflexões intensas sobre a condição do ser humano em meio ao capitalismo e à necessidade exacerbada de possuir bens materiais. 



Saramago, em cada um dos contos reunidos neste exemplar, demonstra que atualmente tratamos as pessoas como “coisas” e as coisas como “pessoas”. O interessante é que para apresentar todas as críticas à estrutura social em que vivemos, ele se utilizou de metáforas e mesclou assuntos políticos com narrativas tão intensas que chegam a ser poéticas, mesmo não tendo poesia alguma. 

Também convém ressaltar que para enfatizar a diferença existente entre os seres humanos, Saramago apresentou dois tipos de protagonistas: aqueles que aceitam a condição de objetos e não lutam contra o sistema e aqueles que tentam de alguma forma lutar contra a tal objetificação e animalização do homem, esforçando-se e dedicando-se para o bem estar da sociedade. Neste segundo grupo perdura a ideia de vingança e de revolta contra as atitudes supostamente aceitas socialmente. 

Um ponto comum entre todas as narrativas é que elas não apresentam finais conclusivos ou estruturados. Em cada conto, a última frase ou o último parágrafo abrem espaço para diversas possibilidades e diversas situações. Isso é interessante já que a vida é exatamente assim: indefinida, incerta, incalculável. 

Para dar uma noção geral dos contos, vou falar de forma sucinta de cada um:
Cadeira, o primeiro conto do livro, apresenta uma descrição detalhada e irônica sobre o desgaste de uma cadeira no momento da queda de Salazar, um ditador já idoso. Saramago utiliza da estrutura da cadeira, da deterioração da madeira e da falta de braços para fazer uma alegoria com a queda da ditadura e do sistema que dominava Portugal e impunha comportamentos e crenças. 





"Enquanto vemos a cadeira cair, seria impossível não estarmos nós recebendo esta graça, pois espectadores da queda nada fazemos nem vamos fazer para a deter e assistimos juntos."

Em Embargo o escritor utiliza de um tom crítico, dramático e irônico para narrar a história de um automóvel que passa a ter vida própria e consciência no momento em que sofre restrições ao acesso do combustível. O conto é uma metáfora acerca da condição do ser humano diante dos objetos e dos bens materiais em geral, apresentando situações políticas e econômicas que rodeiam a sociedade. 



Refluxo, por sua vez, conta a história de um Rei que não suporta conviver com a ideia da morte e a lembrança da finitude da vida, e decide criar um cemitério único e gigantesco, que irá contornar a cidade, para que todos os corpos espalhados nos diversos cemitérios sejam direcionados para o novo local, que será um templo para a celebração da morte. Aqui, a morte é utilizada como uma metáfora para as pessoas que se transformaram em coisas e estão se privando da essência da vida

No conto Coisas, o mais longo do livro, somos apresentados a uma sociedade futurista em que as pessoas são dividas em grupos, conforme a capacidade de consumo. A estrutura social entra em estado de caos quando os objetos começam a desaparecer de forma rápida e misteriosa. Contudo, o verdadeiro problema aparece quando cidades inteiras somem de forma inexplicável e toda a materialidade deixa de existir, perde o sentido e o significado.

"Foi então que do bosque saíram todos os homens e mulheres que ali tinham se escondido desde que a revolta começara, desde o primeiro oumi desaparecido. E um deles disse:
— Agora é preciso reconstruir tudo.
E uma mulher disse:— Não tínhamos outro remédio, quando as coisas éramos nós. Não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas."






Em Centauro o personagem é um centauro que se esconde no mundo e vive atento à destruição dos seres e das criaturas existentes. Contudo, certo dia, ele seqüestra uma mulher e a notícia se torna pública, situação que faz com que ele seja caçado pelos homens, tornando-se um espetáculo midiático. Sem saber como fazer diante de toda a perseguição, o animal decide pular de um penhasco, mas no momento da queda, uma situação inesperada acontece e ele se transforma em dois – um homem e um cavalo - o que deixa clara a mensagem que somos homens animais, homens falhos e com pouca consciência. 

A narrativa representa a constante fuga em que vivemos: a fuga de nós mesmos e da nossa consciência.

"Então olhou seu corpo. O sangue corria. Metade de um homem. Um homem. E viu que os deuses se aproximavam. Era tempo de morrer."


Por fim, em Desforra, o último conto do livro, Saramago utiliza de poucas palavras para contar a história de um porco que ao ser castrado pelo homem, decide comer os próprios testículos. O contexto agressivo e intenso da narrativa visa reafirmar a condição do homem que nega a sua condição e a sua capacidade predatória e destrutiva.



Esse livro permite uma leitura agradável e reflexiva, além de ser um excelente contato com a linguagem inteligente e diferenciada de Saramago, um gênio da literatura.


Gostou? Compre aqui: Americanas, Submarino, Saraiva ou Cultura





You Might Also Like

0 comentários

Obrigada por participar do nosso Universo! Seja sempre muito bem vindo...

Acompanhe nosso Twitter

Formulário de contato