Quase sempre se pensa na morte, quase nunca se pensa no morto. Acho que se perde de vista que, ao morrer, vai existir o corpo de um nós-morto que será objeto de estudo, revisão e zelo pelos/dos outros. Os momentos de velório e luto são spotlights perigosos, pois o que sair dali é o que seremos: depois disso não dá mais para arrematar uma história. Curioso é quando uma narrativa tem esse “fim” como principal tema e tudo que se diz nela, por mais que se espraia para outros lugares, está voltado para a morte, para o morrer, para, enfim, o fim final.
Fim, de Fernanda Torres, conta a história de cinco amigos, Álvaro, Sílvio, Neto, Ribeiro e Ciro, à partir do momento de suas mortes, passando em retrospectiva momentos de suas vidas e de como elas se cruzam. Basicamente, o livro se passa entre três momentos: quando eles jovens se conhecem no fim da década de 50, passando pelo momento de seus casamentos, e agora, próxima ao ano 2000, quando começam, um a um, a morrer. Esses tempos, alternados em fragmentos, apresentam uma espécie de panorama biográfico da vida desses homens, ao mesmo tempo em que traça também a história de uma geração de nosso país.
O talento narrativo de Fernanda Torres, e isso é o principal que precisa ser destacado, está no fato de que, por ser uma história em que cada capítulo conta a história de um desses amigos, ela nunca está nem completa nem incompleta. Ao oscilar por uma indefinição constante, mas sem prometer um “mistério” a ser resolvido, o livro ganha tonalidades quase melancólicas ou existenciais. O pensamento desses sujeitos perante a morte, ao contrário do que se espera, quase nunca têm a ver com a vida, mas sim com o ato de morrer, como se em momento algum fossem capazes de “ver nossa história passando pelos nossos olhos” e que o instante é a única coisa que importa mesmo que reste apenas tão pouco tempo.
Todo o livro é entrecortado, na maior parte do tempo, pelas histórias das mulheres, amantes, casos e aventuras amorosas desses homens, revelando um lado quase patético em que cada pessoa tenta desesperadamente se ancorar em outra, mas vê a tragicidade da vida sempre se tornando a protagonista onde quer que se esteja. Nada que seja surpresa, entretanto, uma vez que o próprio título do livro já nos dá o aviso: o assunto será o fim.
O grande problema do fim está, a meu ver, no fato de que dificilmente conseguimos encara-lo como tal. Na maior parte do tempo, ele é apenas a escada para outro começo, outra tentativa, outra coisa. Fernanda Torres nos mostra que o fim sempre está lá, como diz a personagem Neto, sobre relacionamentos:
Deve-se virar a página, esquecer, zerar, perdoar, passar por cima. As mulheres se negam a entender, insistem em expor suas razões estúpidas, querem mudar quem está do lado, obriga-lo a cumprir o papel de príncipe. Os homens assistem, esperando que elas cansem, enquanto repetem os mesmos erros. Elas agridem, xingam, gritam, choram, mas depois vão cuidar da janta. Até as feministas vão cuidar da janta. E seguimos juntos para um dia faltar e deixar o outro aqui, na cova.
Esses cinco amigos, em geral, tem perfis bastante diferentes: Álvaro é um brocha desquitado e solitário, sem uma grande vida depois de se separar; Sílvio é um devasso, vive envolvido com mulheres e, ao morrer, recebe o obituário do filho que diz: “malquisto pai, infiel marido, abominável avô e desleal amigo”. Ribeiro é um atleta, gosta das mulheres mais novas, mas acaba encontrando Suzana, uma gaúcha que o deixa por Silvio sem que, nem ao morrer, ele viesse a saber do caso. Neto é um mulato e como dizem os amigos, é bom porque é mulato: queria dar certo na vida, e com o preconceito vigente, não pode fazer as estripulias dos amigos; Por fim Ciro, o centro de todos, um homem bonito, sedutor que atrai a todos, talvez o elo entre todos os outros. Ciro é descrito como:
Ciro era a luxúria, a beleza, o irracional, era o amor virginal, a adolescência, o macho por excelência. (..) Ciro era um deus para os três. Um deus bonito pra cacete, e falho, por ser mortal.
E é assim que Fernanda Torres, uma das maiores atrizes e comediantes de nosso país, apresenta a sua versão do Fim. Não se pode deixar de pensar que todos esses homens são também os homens que vivem nela, assim como essas mulheres são desdobramentos de sua feminilidade.
Fim é um excelente romance de estreia para alguém que, ao começar escrever, só consegue falar de uma coisa: o fim.
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