Especial Mia Couto Mia Couto

5 marcantes poemas de Mia Couto

06:00Universo dos Leitores

Mia Couto iniciou a carreira escrevendo poesias. Com uma sensibilidade ímpar e um dom incrível de brincar com as palavras, os seus poemas conseguem ser marcantes e leves, encantar e chocar. Hoje vou mostrar os meus 5 poemas preferidos:


O poeta

O poeta não gosta de palavras

escreve para se ver livre delas.


A palavra

torna o poeta

pequeno e sem invenção.


Quando

sobre o abismo da morte,

o poeta escreve terra,

na palavra ele se apaga

e suja a página de areia.


Quando escreve sangue

o poeta sangra

e a única veia que lhe dói

é aquela que ele não sente.


Com raiva

o poeta inicia a escrita

como um rio desflorando o chão.

Cada palavra é um vidro em que se corta.


O poeta não quer escrever.

Apenas ser escrito.


Escrever, talvez,

apenas enquanto dorme.

( Mia Couto, no livro "Idades Cidades Divindades", Lisboa, Caminho, 2007)


O Espelho

Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.


Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.


A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.

(Mia Couto, no livro "Idades, cidades e divindades", Editora Caminho, 2007)


O Amor, Meu Amor

Nosso amor é impuro 

como impura é a luz e a água 

e tudo quanto nasce 

e vive além do tempo. 


Minhas pernas são água, 

as tuas são luz 

e dão a volta ao universo 

quando se enlaçam 

até se tornarem deserto e escuro. 

E eu sofro de te abraçar 

depois de te abraçar para não sofrer. 


E toco-te 

para deixares de ter corpo 

e o meu corpo nasce 

quando se extingue no teu. 


E respiro em ti 

para me sufocar 

e espreito em tua claridade 

para me cegar, 

meu Sol vertido em Lua, 

minha noite alvorecida. 


Tu me bebes 

e eu me converto na tua sede. 

Meus lábios mordem, 

meus dentes beijam, 

minha pele te veste 

e ficas ainda mais despida. 


Pudesse eu ser tu 

E em tua saudade ser a minha própria espera. 


Mas eu deito-me em teu leito 

Quando apenas queria dormir em ti. 


E sonho-te 

Quando ansiava ser um sonho teu. 


E levito, vôo de semente, 

para em mim mesmo te plantar 

menos que flor: simples perfume, 

lembrança de pétala sem chão onde tombar. 


Teus olhos inundando os meus 

e a minha vida, já sem leito, 

vai galgando margens 

até tudo ser mar. 

Esse mar que só há depois do mar. 

(Mia Couto, no livro "idades cidades divindades", Editora Caminho, 2007)


Identidade

Preciso ser um outro

Para ser eu mesmo


Sou grão de rocha

Sou o vento que desgasta


Sou pólen sem inseto


Sou areia sustentando

O sexo das árvores


Existo onde me desconheço

Aguardando pelo meu passado

Ansiando a esperança do futuro


No mundo que combato morro

No mundo por que luto nasço.

(Mia Couto, no livro “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”)


Ser, parecer

Entre o desejo de ser

e o receio de parecer

o tormento da hora cindida


Na desordem do sangue

a aventura de sermos nós

restitui-nos ao ser

que fazemos de conta que somos

(Mia Couto, no livro "Raiz de Orvalho e Outros Poemas")

                       




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