Cia das Letras Crítica

O último voo do Flamingo, de Mia Couto

06:00Universo dos Leitores


Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda há. E esse sol só pode nascer dentro de nós.

(Mia Couto)


Desde Terra Sonâmbula que Mia Couto vem contando histórias de uma Moçambique após sua independência. A maioria delas trata de um país absolutamente devastado pelas guerras civis das tribos e dos autoritários e violentos governos que, em meio a corrupção, se usam da fé e da crença da população para se tornarem espécies de novos deuses encarnados. No entanto, não se pode dizer que os livros de Mia Couto sejam trágicos ou tristes, pelo contrário, quem os lê percebe logo de cara a imensa poesia, mágica e esperança na narrativa de suas fábulas. Em O Último Voo do Flamingo (2005) não é diferente.

O livro conta a história de um italiano chamado Massimo Risi que chega na vila de Tizangara para investigar misteriosas explosões de soldados da ONU em operações de paz e, por não dominar a língua, acaba recebendo como companhia o Tradutor de Tinzangara, o narrador da história. Na vila, tanto o narrador quando Risi, ao investigar o caso, entram em contato com histórias de todos os moradores daquele local: a estranha e bela Temporina, com cara de menina e corpo de velha, a prostituta Ana Deusqueira, o vidente Zeca Andorinho, e o pai do narrador, o senhor Sulplício. Ah, e claro, há também o governador local, Estevão Jonas, um corrupto enriquecido que manda e desmanda em todos, sendo quase que um opressor entre os oprimidos, uma vez que segue ordens de seus superiores no exterior.

Algo que se pode destacar de O Último Voo do Flamingo é uma espécie de caráter de humor, ou pinceladas humorísticas na escrita, fato raro em Mia Couto, principalmente quando, ao explodirem, os soldados deixarem apenas uma parte como rastro: o pênis. Em uma cena hilária, Ana Deusqueira, a prostituta, é chamada na frente de todas as autoridades para dizer de quem era aquele pênis no meio da rua, uma vez que ela deveria conhecer, literalmente, todos os membros da vila. No entanto, o que parece ser essa leve história de humor, retorna para o tema de Couto: a exploração da pobreza e da crença dos Moçambicanos. Logo de cara, fica claro para todos, até para Risi que só há essa investigação, pois se tratam de estrangeiros que estão morrendo, fato que não ocorreria caso fossem os negros africanos a estarem explodindo. É como dizem, aqueles homens parece que nasceram por defeito.

Como todos os espaços descritos por Mia Couto, aquela vila também parece vertiginosa, mágica, com seres ainda semi-míticos, sempre sendo levados por espíritos, tradições, histórias e passados longínquos que lhes são contados. Temporina, por exemplo, havia sofrido uma maldição de envelhecer no rosto e ficar jovem de corpo, assim como os corpos dos explodidos que, teriam morrido por fornicar com as moradoras da vila e serem punidos pelos deuses por isso. Esses espaços são colocados como um lugar a se descobrir. Risi é logo perguntado: “Qual vila o senhor está visitando? (…) Aqui temos três vilas com seus respectivos nomes – Tizangara-terra, Tizangara-céu, Tizangara-água.”

Ou seja, a lógica é diferente da nossa composição de país ocidental, europeu, lógico, cartesiano: Mia Couto descreve mundos, por vezes muito pequenos, por vezes gigantes, mas que, sonâmbulos, nunca estão no mesmo lugar, nunca se fixam.

Todos esses temas são tratados pelo autor no discurso contido no fim de seu livro, texto que acho que arremata o que tento dizer:

O Último Voo do Flamingo fala de uma perversa fabricação de ausência – a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos. O avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um crescente empenho moral. Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que tem as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores.

E é isso que o livro almeja, e faz, ao lado de diversas obras do próprio autor que descreve uma Moçambique mágica, criadora, potente, vital para o mundo, um lugar que vale a pena viver e lutar.

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