Não sei qual de nós conhece melhor a outra, se é ela a mim ou eu a ela.
Sei a hora que ela chega, sem pedir permissão, geralmente tarde, por ter sempre ficado até muito tarde na véspera. É quando acordo.
Ela também sabe que acordei, ou se atrasaria às vezes. E ela não se atrasa. Já entra confundindo tudo, desassossegada, me carrega, e então começa o dia.
Somos unha e carne. Não nos desatamos. Será que nos amamos? Convivemos. (Se ela gostasse de mim, talvez nem viesse. Ou, ao contrário, é porque gosta de estar comigo que ela não me larga).
Quanto a mim, sei muito bem, é ela que me move, só não sei se isso é alegria ou se é tragédia. Longe de querer ofendê-la, devo confessar: sim, ela me incomoda.
Tento me imaginar, rede balançando a beira-mar, brisa, lua, maresia etc., e a calma.
Não em mim.
Acho que já vim com ela, lá de onde vim, e vou levá-la comigo, lá para onde for, sem nunca, nem por um instante, ter estado sozinha.
Acredito que aconteça o mesmo com todos os seres do universo, exceto com Dorival Caymmi, e admito que sinto enorme inveja dele por isso. (Ela, em mim, torna tudo tão imprevisível que não se faz impossível Dorival revelar-se ansioso, e não Caymmi, negando a teoria acima mencionada.) Sendo assim, diria eu, a conclusão é que ela é a praga do universo, ela é deusa, sábia, uma chata, insistente, não se toca, é uma metida, leva todos na sua lábia, "E aí? E se...? Se apresse. Vai ficar aí? Virou poste?".
Penso se ela é uma só, rainha, está em mim, em você, em toda a humanidade, ou se cada um tem a sua ansiedade, cada uma com suas características.
Da minha, posso afirmar: ela me invade, me vence, ela me irrita, me ofende, sem mim é volátil, eu sou combustão e ela é fogo, manda em mim, a desgraçada, e me enlouquece, me acalenta, não me esquece, é companhia.
Será que todas elas são assim?
Será que existem outras?
Será que são uma mesma entidade?
Será, será, será, olha ela, como sempre, enchendo de serás a minha vida.
O que seria de mim sem ela?
Não é fácil cogitar um eu sem eu dentro, casca de algo tão distante de mim quanto os piratas do Caribe.
Mas, afinal, eu sou eu ou eu sou ela, quem é ela? Essa aí que me pergunta "quem sou eu?", dia após dia, e nunca encontra resposta e, se encontra, logo descarta por pura implicância com a aceitação, o vazio, a paz, a constância, harmonia.
O que seria dela sem mim?
Não é fácil presumir ela solta por aí sem meu coração pra bater, e acelerar, quase morrer, ir passear, passos largos e rápidos, pra onde? Sei lá, e aí correr, de quê? E eu sei? Pra algum lugar, cantarolar, ouvir a mesma música mil vezes seguidas, repetir na cabeça a mesma frase sem sentido até pensar pra que eu estou repetindo essa frase sem sentido na cabeça, e aí, uma hora qualquer, na maioria das vezes já perto da loucura, se pôr a escrever coisas, palavras, frases, crônicas, livros, diálogos que jamais existiram, maluquices de toda espécie, será que ela sabe escrever? Com quantos dedos? Imaginação não lhe falta ou ela não viveria me soprando hipóteses, desgraças, acidentes, romances, enredos, mentiras.
Não adianta tentar separar.
Racionalizar.
Eu sou eu, ela é ela.
Eu e ela, feliz ou infelizmente, já estamos acostumadas uma com a outra.
Dividimos vários suplícios.
Rimos juntas.
Derramamos prantos.
Bebemos.
Dançamos.
Pra depois, tarde da noite, eu pedir encarecidamente, "agora vai", e ela continuar aqui sem dar ao menos uma trégua.
(Adriana Falcão)
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