É difícil falar de Marcelo Rubens
Paiva sem falar do seu livro Feliz ano velho que, embora tenha sido lançado em
1982, só li recentemente (resenha aqui). Nele, Marcelo conta sua própria história,
de como ficou paraplégico em um acidente. Em Ainda estou aqui, o autor volta
com a proposta de contar a história de sua família mais detalhadamente, sobre o
desaparecimento e morte de seu pai, além da luta de sua mãe para descobrir a
verdade sobre o caso e a posterior luta contra o Alzheimer.
“A ditadura apertou. A família do
Edu se exilou em Londres. Ele me mandava cartas perguntando de futebol e de
Carla. Eu mentia. Dizia que estávamos namorando. Que ficávamos na casa dela nos
pegando, aos onze anos de idade. Meu pai foi preso e morto naquele ano. Me
fechei. Meu olhar ficou triste, como o de nenhum outro moleque. Muitos passaram
a me evitar. Eu era filho de um terrorista que atrapalhava o desenvolvimento do
país, eles aprendiam com alguns pais e professores, liam na imprensa, viam nos
telejornais. Meu pai era membro “do Terror”! Em 1971, eu ficava muito tempo
sozinho no banco da escola. Aos poucos amigos, eu tentava explicar que meu pai
não era bandido. A maioria não tinha ideia do que se passava. A censura e o
milagre brasileiro cegavam."
Embora seja natural que mais de
trinta anos depois encontremos um Marcelo mais maduro, é possível notar também
que ele optou por utilizar um tom muito diferente nesse novo livro, abrindo mão
da linguagem coloquial e juvenil, cheia de gírias que ele usou para falar da
própria desgraça em Feliz ano velho, trazendo dessa vez uma escrita muito mais
séria, repleta de críticas severas sem nenhum pudor e até mesmo momentos de
nostalgia e, porque não dizer, um tom um pouco amargo com as agruras de sua
vida.
“Um dia fiz uma descoberta
incrível: nunca dancei com a minha mãe. Nunca a abracei de verdade. Nunca rolei
com ela fazendo cócegas. Nunca gargalhamos juntos. Nossa relação era como as
regras que me ensinava, protocolar. Talvez ela tivesse lido num manual como se
relacionar com filhos. Um manual de etiqueta, com um capítulo sobre como abrir
as portas, cruzar talheres, tirar a dona da festa para dançar. Até nossas
conversas eram secas, diretas, objetivas. Nunca pude lhe pedir conselhos sobre
garotas, numa adolescência que chegava sem escalas.”
Ao falar sobre o caso de seu pai,
o deputado Rubens Beyrodt Paiva que, em 1971, foi torturado e morto por agentes
da ditadura, Marcelo cita nomes dos envolvidos no caso, conta sobre como a
mídia abordou o assunto e traz até mesmo a transcrição do processo de denúncia.
Durante muitos anos, a versão sustentada foi a de que Rubens Paiva foi preso e
fugiu, tendo desaparecido, mas Eunice Paiva nunca aceitou isso como verdade e
lutou a vida inteira para provar que o marido tinha sido assassinado. Ela
precisou criar cinco filhos sozinha, sem sequer poder tocar nos bens deixados
pelo deputado desaparecido, já que não havia uma certidão que comprovasse o
óbito. E foi aí que a mãe de Marcelo tornou-se a protagonista da história da
família.
Ela decidiu entrar para a
faculdade de Direito e se envolveu com tudo que pôde para defender pessoas
injustiçadas. Isso sem nunca chorar diante das câmeras que queriam mostrar seu
sofrimento e as dificuldades de sua família, que também não presenciava seus
momentos de choro e tristeza.
“Fez vestibular para a faculdade
de direito em 1972 e passou. De dia ia para a rua XV de Novembro, sede da
firma. Em casa, no quarto, trancada no escuro, chorava todas as noites, chorava
sozinha, sem que nos déssemos conta. Não queria que percebêssemos, mas que
tivéssemos uma infância e adolescência sem âncoras na alma, que tocássemos a
vida, os estudos, que tivéssemos amigos, namoradas. Não repartiu sua dor com
ninguém. Não sei julgar se estava certa ou errada. Era seu jeito de ser. Desde
menina, a italianinha não repartia seus sentimentos felizes ou dolorosos com
ninguém. Superar? Impossível. Esquecer? Nem pensar. Tocar. Seguir. Esperar
reacenderem outra fogueira no alto, outro facho de luz, que orientasse a volta
para a costa, para a terra firme, o chão.”
Enquanto Marcelo Rubens Paiva
fala de suas memórias, ele traz também a nova luta de sua mãe para lidar com
suas próprias, graças ao Alzheimer. Sua mãe já não é mais a mesma. Ela já não
cuida mais da família, pelo contrário, precisa de seus cuidados. De um jeito
comovente e emocionante, o autor relata as fases da doença e como tudo e todos
ao redor são afetados.
Para mim, Ainda estou aqui foi
uma leitura muito mais emocionante e envolvente do que a de Feliz ano velho e
tenho certeza que quem gostou de ler a primeira autobiografia de Marcelo Rubens
Paiva também irá se emocionar com seu novo livro.
“Percebi que uma dezena de gogo
boys do alto de um carro acenava para nós. Olhei ao redor. Era na nossa direção
que acenavam. Então reparamos na minha mãe. Ela acenava para os carros
alegóricos, com strippers dançando uma música de boate (pancadão). Ela acenava,
eles respondiam. Ela chorava. Acenava e chorava, emocionada, enquanto eles
mandavam beijos e rebolavam. Foi das poucas vezes que a vi chorar. Minha cabeça
não encontra uma explicação razoável para isso. Talvez nem ela conseguisse
explicar. É daquelas peças que o Alzheimer apronta e que sempre surpreende.
Doença que não apenas afeta a memória, mas embaralha emoções, enaltece
desagrados que não existem, muda o humor até do mais calculista dos matemáticos.”
1 comentários
Perda de uma guerreira que vai fazer falta. Ótima resenha. 😍
ResponderExcluirObrigada por participar do nosso Universo! Seja sempre muito bem vindo...