Abigail Tarttelin Globo Livros

Menino de Ouro, de Abigail Tarttelin

19:15Universo dos Leitores

"Nós apenas lhe dissemos que Max é diferente. Max é especial." 

A complexidade da história e a riqueza da abordagem de Abigail Tartellin exigem uma resenha detalhista, logo, falarei um pouco mais que de costume. Garanto que nada do que eu disser aqui vai estragar a história e os seus segredos. Todas as informações foram retiradas nas primeiras páginas, então muito ainda será revelado no livro.

Leiam, tenho certeza que vão se interessar pelo livro, um dos mais incríveis que li este ano. 

Sobre a história:

Max tem 16 anos e é um garoto de ouro: lindo, charmoso, faz o maior sucesso com as garotas, é bom no futebol e tem ótimas notas na escola. Além disso, os seus pais são advogados importantes e conhecidos, o que o torna uma estrela. No entanto, apesar de todas as aparências, ele esconde um segredo que pesa e corrói a sua alma: ele é intersexual. 

"Intersexual é a pessoa que nasceu fisicamente entre o sexo masculino e o 
feminino e tem parcial ou completamente desenvolvidos ambos os 
órgãos sexuais, ou o predomínio de um sobre o outro." 

Apesar da sua dificuldade em se relacionar e compreender o seu corpo, ele é um garoto positivo, que tenta levar uma vida normal. Tudo isso muda quando Hunter, o seu melhor amigo e o único de fora da família que conhece o seu segredo, resolve estuprá-lo para satisfazer a sua curiosidade de viver uma experiência diferente, com um garoto com um corpo diferente. 


"Esse é o pior momento da minha vida. Nunca falaram comigo dessa maneira. Essas palavras, a palavra, queimam no meu rosto, arrancam vergonha do meu sistema nervoso, fazem lágrimas aferroar, de repente, de imediato, o canto dos meus olhos."

A atitude de Hunter, além de mudar a forma como Max se enxerga, o conduz a uma situação inusitada e repleta de dificuldades. A partir deste fato, ele tem que questionar a sua existência, o seu corpo, a sua capacidade de amar e de ter um relacionamento comum e até mesmo a relação familiar. 

Minhas Impressões:

Menino de Ouro é um livro intenso, árduo, diferente, envolvente e que nos apresenta uma realidade pouco discutida em livros e menos ainda no nosso dia-a-dia. Max é intersexual (hermafrodita) e apesar do apoio da família e da sua vontade de ser forte e levar uma vida comum, as dificuldades existem e o rodeiam a todo o tempo, ficando muito mais intensas após o estupro.

O tema abordado por Abigail Tarttelin é extremamente relevante e abre os nossos olhos para uma realidade triste, mas que conforme estatísticas apresentadas ao longo da história, não tão rara. A escritora foi corajosa ao propor uma temática que foge à esperada pelo senso comum, mas conseguiu atingir a sua meta com louvor. A história é bem construída, sensível e intensa. Não existem passagens desnecessárias, pontas soltas ou detalhes incoerentes - a cada acontecimento e a cada pensamento dos personagens ficamos mais envolvidos com a trama, que vai se apresentando como uma colcha de retalhos diante dos nossos olhos. 

Os segredos são muitos, todos escondem algo e todos tem suas razões e suas justificativas, nem sempre plausíveis, mas sempre dignas de seres humanos, repletos de qualidades e defeitos, sempre passíveis de erros e de amadurecimento. 

A narrativa é em primeira pessoa, com capítulos alterados entre os personagens principais, quais sejam: Max, o seu irmão Daniel, a sua mãe Karen e a garota por quem ele se apaixona, a sensível e sensata Sylvie.  Além desses, também existem capítulos narrados pela médica Archie e pelo pai de Max, o Steve. Com tanta variedade, a escritora conseguiu construir perfeitamente cada um deles, o que é simplesmente incrível! 
Uma família:

A obra tem como foco a família de Max e a forma como eles lidam com a situação. É possível perceber que a doença do garoto reflete não só no grupo familiar como em cada membro de forma particular. 

Na medida em que conhecemos cada personagem e as suas particularidades, conseguimos perceber que a família, apesar de unida, tem certos distanciamentos causados pela dificuldade em abordar o assunto da intersexualidade. Apenas para esclarecer, vou falar um pouco sobre cada um:

- Max, como já mencionado, é um garoto forte, alegre e que tenta se aceitar da melhor forma, no entanto, em razão do tanto que o pai trabalha ele pensa que ele não se importa e que sente vergonha de ter um filho diferente. Da mesma forma, apesar da proximidade com a mãe, por vezes ele acredita que ela é invasiva e super protetora. Em meio a isso tudo, ele tem diversas dúvidas que por medo não tem coragem de perguntar.


"1. Como funcionam meninos e meninas. Desenhos em preto e branco, com 
folhas de formato A4. Eu me senti, compreensivelmente, excluído. 
Me perguntava onde me encaixaria". 

- Daniel, o irmão de 9 anos de idade, idolatra Max, o vê como um exemplo, um ídolo, o que é normal em irmãos mais novos. No entanto, na medida em que Max entra em crise e passa por dificuldades, ele começa a se sentir incomodado e a questionar os atos dos pais, que o mantém alheio aos acontecimentos para protegê-lo. Isso gera uma quebra de confiança por parte de Daniel, que também se sente menos amado, em razão da atenção excessiva que todos conferem ao irmão.


"De nós, ele é o perfeito. Sempre que a minha família aparece no jornal, eles publicam fotos do meu irmão. A maior parte das vezes eles me deixam de fora."

- Karen, a mãe, vive em um eterno conflito sobre a sua capacidade de ser mãe. Não sabe o que faz para proteger o filho, mas diante das dificuldades não respeita as suas escolhas e decisões. Ela quer impor a sua vontade no intuito de protegê-lo, mas não consegue limitar as suas ações, o que gera consequências incalculáveis para a família.


"A maneira como me sinto sobre os meus filhos, particularmente, é diferente da forma de como eu imaginava que seria a sensação de ter filhos. Acho que eu não tinha chegado a pensar sobre isso o suficiente."

- Steve, o pai, é Procurador Chefe da Coroa. Devido à sua atuação ética e responsável, se candidata a membro do Parlamento. Ele vive para o trabalho e participa pouco da família, no entanto, aos poucos se mostra um pai dedicado, justo, respeitoso e que usa do trabalho para fugir da realidade. Ele não sente vergonha do filho, quer apenas que ele seja seja feliz e não sabe como ajudar. O distanciamento é a sua válvula de escape, contudo, aos poucos ele percebe que não é o certo, se aproxima e passa a ter um papel essencial na vida dos filhos. 


"(...) Empatia é assim. É uma rua de mão dupla. Alguém desumaniza você 
ao violar seu filho, e cada pensamento que você tinha a respeito deles 
é quebrado, trucidado, e logo desaparece." 

Acredito que as explicações acima são suficientes para mostrar um pouco do contexto da história e demonstrar o quanto a escritora desenvolveu bem cada personagem.
O papel da medicina:

Um ponto que se destaca na história é a participação da médica Archie e a forma como a escritora apresenta a opinião dos médicos sobre o assunto. Ela deixa claro que muitas vezes, mais que soluções técnicas e operacionais, a pessoa portadora uma condição incomum precisa ser respeitada e tratada como um ser humano. 

Isto porque, o que é possível perceber é que apesar do pouco desenvolvimento acerca da intersexualidade, os médicos tentam encontrar soluções e buscam sanar as suas curiosidades, usando do paciente como um objeto de estudo. Archie, por sua vez, compreende Max, ouve suas angústia, apresenta opções e respeita as suas escolhas como uma pessoa capaz de pensar e de se entender. 

"Como médica, descobri que as respostas estão sempre nas entrelinhas, em algum lugar na paisagem do corpo. As evidências físicas falam mais alto odo que as palavras. Há evidências espalhadas por todo corpo de Max".

Aos meus olhos, a sua postura é essencial para o amadurecimento de todos os outros personagens. 

O direito de escolha:

Ao longo dos acontecimentos, nota-se que a família de Max por vezes não escuta a sua opinião, apenas julga as suas atitudes. Muitas vezes os seus pais discutem a sua vida na sua presença como se ele não estivesse no local. Além de constrangedora, a situação contribui para a sua insegurança, os seus receios e a sua depressão. Ele chega ao ponto de se considerar uma marionete e essa impressão interfere não só dentro do círculo familiar como também na forma com a qual ele se relaciona com os colegas e com Hunter. 
O preconceito e o medo da solidão:

Entre as diversas questões abordadas, uma delas é a questão do preconceito. Na cabeça de Max, a maior preocupação é manter o segredo. O seu medo principal não é a sua vida e o que ele pode fazer para ser feliz, mas sim o que as pessoas pensarão se descobrirem e como ele será sozinho e rejeitado se a notícia se espalhar. 

A forma como a questão é abordada esclarece ao leitor a intensidade com a qual a exigência de um padrão social perfeito e comum pode influenciar os caminhos de uma pessoa. Muitas das escolhas e decisões de Max teriam sido mais fáceis se não existissem "os outros". 

A lição:

Muito mais que uma história envolvente, o que Menino de Ouro deixa para o leitor é uma lição sobre a vida. A história mostra a importância de respeitar o próximo, de aceitar que as pessoas são diferentes, mas mesmo assim são humanas. Também fica notória a importância do diálogo, da verdade, da união familiar e do amor. 

A edição:

É preciso destacar a edição da Globo Livros, que está simplesmente fantástica. O livro é leve, fácil de manusear, impresso em folhas amareladas e em papel pólen. 

Também é preciso mencionar a tradução de Cecilia Giannetti, que está extremamente bem feita. Além de não conter nenhum erro, ela cuidou de incluir notas de rodapé para esclarecer termos em inglês, siglas e curiosidades sobre o tema abordado. 
                                                   

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