Cartas a um jovem poeta
Globo Livros
CARTAS A UM JOVEM POETA, DE RAINER MARIA RILKE
08:00Universo dos Leitores
Uma pergunta que sempre é feita quando se começa a escrever um texto é: “Preciso mesmo escrevê-lo?” Faço-a nesse momento, inspirado pela leitura do livro de Rainer Maria Rilke (1875-1926). Na maioria das vezes, escrever não é nem uma paixão, nem um impulso, é uma necessidade, um projeto, uma forma de se deslocar da vida comum do cotidiano e tentar olhar as coisas de novos ângulos e com novas cores. Isso pode ser feito de diversas formas, uma das mais inspiradoras é a de Rilke, o mais romântico dos quase modernos.
Cartas a um jovem poeta:
As Cartas a um Jovem Poeta, escritas entre 1903 e 1908 para o então novato na área Franz Xaver Kappus, se tornaram a obra mais conhecida de Rilke, pelo fato de que nela o autor se expõe diretamente, como quem faz uma confidência, dando dicas a Kappus não somente sobre a arte da escrita, mas também sobre a vida, o amor, a solidão e o novo papel da mulher.
Em uma observação atenta do livro, o que se observa é um gradual caminho atravessa Rilke em uma confluência de crenças e descrenças típicas da época. No começo, todas as suas ideias sobre poesia ainda guardam bastantes resquícios do romantismo, como uma espécie de obrigatoriedade de uma solidão e uma completa separação entre corpo e espírito. Inclusive, ele insiste para que Kappus não leve seus impulsos sexuais a sério, pois eles seriam espécie de engano para o que há de maior no amor. Enquanto Kappus diz que viver deveria ser como “escrever no cio”, Rilke expõe um idealismo, à lá Platão, no qual existe alguma verdade que se deve atingir como se vivêssemos em uma véspera de Natal a espera do nascimento de Jesus.
A sexualidade ideal, ressaltada por Rainer Maria Rilke, seria aquela em que os dois sexos gradualmente se apagam:
O homem e a mulher, libertados de todos os sentimentos falsos, de todos os empecilhos, virão a procurar-se não mais como contrastes, mas sim como irmãos e vizinhos; a juntar-se como homens para carregarem juntos, com simples e paciente gravidade a sexualidade difícil que lhes foi imposta.
Nesse trecho acima, embora se ressalta “os sentimentos falsos” do homem e da mulher, já se percebe traços de uma androgenia moderna, de uma parceria e apagamento de “funções sociais” de cada um. Isso se amplia quando Rilke começa a abandonar um tipo de amor, embora ainda o veja como algo “bom”. Para ele, o amor nada mais é que uma tarefa que nos foi imposta. Repito: o amor é uma tarefa imposta:
O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são uma preparação.
A verdade, como diz Sérgio Augusto de Andrade, assoava com a gravidade majestosa do mármore grego: “enquanto todos pareciam empenhados em descobrir o lirismo histérico de locomotivas e arranha-céus, Rilke só se concentrava em inventar anjos”. Por isso, ainda há uma visão clássico do amor, no entanto, seus anjos são mais infernais que celestiais, e o amor só pode se dar na solidão. Ao mesmo tempo, ele já preconiza a ideia de uma nova mulher que não é mais aquela contemplada e amada pelo homem. Assim, o mundo está na égede de novas perguntas cujas respostas viriam de acordos entre os sexos e não de uma solução apenas masculina.
Faço apenas uma ressalva aqui: Rilke recomenda a Kappus que conheça as esculturas de Rodin, pois será nelas que uma mudança de perspectiva se dará no poeta e, a partir dela que o modo de poemas-coisa de Rilke aparecerá. No entanto, embora Rodin seja citado, pouco dessa lógica ainda se possa ver na obra.
As Cartas a um Jovem Poeta são, na verdade, uma espécie de manual para se viver no início do século XX. As mentalidades, que oscilavam em uma cidade que crescia, estavam confusas, não se sabia para onde olhar, pensar e agir. Ao fim, uma dica final para Kappus: não observar demais. É isso, quanto mais se olha, mais se vê e mais se sofre. Rilke, nesse ponto, já era moderno.
Estátua de Rodin |
A Canção de Amor e Morte do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke
A Canção de Amor e Morte é uma breve história, escrita por Rilke em apenas uma noite, de um Porta-Estandarte que caminha com condes e que, assim que chega ao castelo, após um longo jantar entre vinhos e delícias, dorme acompanhado e é acometido por uma invasão que incendeia tudo. O jovem, que havia escrito uma carta para a mãe, é levado pelos braços do inimigo como um alvo troféu, como um anjo que se despede.
Pode-se observar na canção um conceito duplo que se vai se configurando: de um lado uma espécie de mágica, uma natureza que se mostra, com sombras, crepúsculos, quase sempre vistos como formas celestiais, anjos, madonas e, por outro lado, uma flerte constante com a morte. Assim, o corpo que sempre se cansa e repousa, parece se preparar para a despedida final e então, vê em toda mágica uma mistificação e encantamento do mundo. A urgência do corpo que se vai e precisa viver fica marcado nos breves amores e nos breves momentos que passam como nas Iluminuras de Rimbaud. Para isso, um grande parceiro de Cristóvão Rilke, a personagem, é o sonho:
Estava uma janela aberta? Está dentro de casa a tempestade? Qem bate com as portas? Quem atravessa as salas? - Deixa. Seja quem for. Na câmara da torre não o encotnrará. Como detrás de cem portas, está este grande sono que duas criaturas dormem em comum. Numa comunhão de Mãe ou de Morte.
Esse belo texto de Rilke, ouso dizer melhor que as Cartas, apresentam um mundo de profunda poesia que assoma os corpos. O que vejo é uma figura angelical constante, que se desdobra e múltipla, mas que só pode se realizar em sem final: o torpor, a embriaguez, o sonho e a morte.
Rainer Maria Rilke |
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