Os dois namoram faz tempo, gostam-se, curtem-se, mas estão sempre atritados. Sempre, não digo, mas com freqüência. Não moram juntos, e talvez esteja aí a causa dos atritos. Não morar junto tem vantagens e desvantagens; uma das vantagens é parecer que continuam namorados, em vez de casados, não ter que aturar os achaques do outro a toda hora nem desgastar o mistério da relação que a vida em comum quase sempre extingue.
Isso sem falar na relativa autonomia de que ambos gozam para sair, fazer amizades novas, enfim, manter vida própria, como na época de solteiros. A principal desvantagem, para cada um deles, é exatamente o excesso de autonomia do parceiro, que anda não se sabe por onde nem com quem. Isso sem falar na tristeza -que bate em certas noites- de estar cada um sozinho em sua cama e na solidão do fim de semana, se, por algum motivo, um dos dois não está disponível.
Acresce o fato de que as pessoas não são iguais, ainda que tenham muitas afinidades, como é o caso deste nosso casal de namorados. São afins, mas ele resiste menos à solidão, enquanto ela adora ficar sozinha, dias inteiros, imaginando histórias e situações. Se espia o pátio interno do edifício e vê uma menina à janela, começa a imaginar como será a vida dela, que sonhos alimenta... Ou sai à toa pela rua, entra num shopping e fica perambulando de loja em loja, sem nada comprar.
Enquanto isso, ele, terminado o trabalho do dia, não sabe o que fazer. Liga a televisão, mas nada de novelas, que ele odeia; futebol, só se for jogo de seu time ou da seleção; tênis ainda suporta, mas não é uma coisa que lhe encha a vida; às vezes, enche-lhe a paciência.
E ela, sua namorada, que andará fazendo àquela hora? Pensa em telefonar-lhe, mas hesita, não vale a pena, ela não atenderá. Pois é, essa é uma característica dela: quase nunca atender os telefonemas, para fugir dos parentes.
Ele é cordato e paciente, procura aceitar as idiossincrasias da namorada, mas, é claro, paciência tem limites. E foi no último fim de semana que sua paciência atingiu o limite, depois de quase 15 dias sem se encontrarem, devido a uma sucessão de empecilhos.
Na quarta-feira, ele conseguiu falar com ela, que prometeu encontrar-se com ele na quinta. Mas, na quinta, ligou de manhã para cancelar o encontro porque estava indisposta. Ele ouviu aquilo mortificado. "Será que a gente não se vê mais?", perguntou. Ela prometeu que, no fim de semana, iriam ao cinema. "Sim, mas em que dia?" "A gente acerta", disse ela, "fica frio, não me pressiona, certo?"
Certo, mas nem tanto. No dia seguinte, sexta-feira, ela não telefonou. Depois de muito esperar, ele ligou, e ninguém atendeu. À noite, ligou de novo, nada. Bem, ela disse que seria no fim de semana, pode ser amanhã, sábado, mas não custava nada ter ligado. Foi se deitar, inquieto e ressabiado. Quase dormindo, ouviu soar o telefone, foi correndo atender, era engano. Amanhã, ela liga, na certa...
Mal acordou, disse a si mesmo: espero que ela ligue hoje, sábado, se não for para irmos hoje ao cinema, ao menos para acertar a ida amanhã. Ocupou-se como pôde pela manhã, evitando a expectativa. À hora do almoço é que ela costuma ligar, mas não ligou. Ele começou a se afligir: duas horas, duas e meia, e nada. Decidiu ligar: ninguém atendeu. Mal acreditava naquilo: por que ela não atende ao telefone? Ao ver que já passava das três, perdeu as esperanças. Não telefonaria mais.
Abatido e desapontado, decidiu fazer alguma coisa, sair, andar pela rua, mas mudou de idéia: levou o carro para pôr gasolina e, depois, resolveu ir até o centro ver uma exposição de arte. Às seis horas, estava em casa de novo, mas com uma decisão tomada: não telefonaria para ela nem atenderia seus telefonemas aquela noite, pois certamente telefonaria. Sentou-se no divã, ligou a televisão e ficou vendo um filme de Woody Allen que já vira outras vezes. "Se ela telefonar, não atendo de jeito nenhum", garantiu ele.
E, de fato, uma hora depois, o telefone tocou, e ele não se moveu. Eram nove horas quando o telefone soou de novo e ele não se moveu. "Ela está sabendo agora como é bom ligar e ninguém atender!" O telefone tocou ainda umas três vezes e ele, impassível, não atendeu. Foi dormir tarde da noite, triste, mas vingado.
No dia seguinte, às dez da manhã, ela ligou: "Benzinho, vamos ao cinema hoje, não? Estou louca pra ver aquele filme inglês e mais ainda pra te ver!" Ele, meio sem jeito, perguntou: "Você ligou para mim ontem à noite?" E ela : "Não liguei, não; cheguei tarde em casa e caí na cama".
(Ferreira Gullar)
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